terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Gay Talese, negros e a edição de fotografia em jornalismo

Ainda que a abolição da escravatura nos EUA tenha ocorrido cedo no século XIX, a segregação, marcadamente no Sul ainda que forte em todo o país, permaneceu ao longo do século XX. Aliás, até bem tarde no século XX. Nos anos 60, no que ficou conhecido como movimento pelos direitos civis e que teve como figura proeminente o pastor batista Martin Luther King, uma série de atos, manifestações e ações colocaram a discriminação contra os negros em questão, levantando bandeiras como o fim da segregação (explícita ou velada). De direitos ‘maiores’, como o voto, à possibilidade de sentar em qualquer lugar em um ônibus, em um bar ou, mesmo, beber água em bebedouros públicos.
Um dos atos-ícones deste movimento foi o acontecido em Selma, no Estado do Alabama, Sul dos Estados Unidos. Lugar marcado pela defesa da escravidão na Guerra de Secessão, Selma era conhecida como cidade em que o ódio racial se manifestava de maneira clara. Os fatos ocorridos em Selma estão descritos no livro Vida de Escritor, de Gay Talese (Companhia das Letras, 2009). O autor esteve na cidade cobrindo, em 1965, uma caminhada com cerca de 400 pessoas que pretendia percorrer os 80 quilômetros entre a cidade e a capital do Alabama, Montgomery. A manifestação era uma forma de fazer propaganda para o alistamento de negros pelo direito ao voto. A passeata foi brutalmente interrompida pelos policiais locais e o fato foi amplamente documentado pela televisão, que então dava seus primeiros passos no jornalismo. As imagens correram os EUA, tornando Selma uma das referências na luta pelos direitos civis. Dois meses depois, uma nova caminhada foi organizada, dela participando cerca de 25 mil pessoas. O vídeo abaixo é um pequeno documentário sobre os eventos de Selma que ficaram conhecidos como “Domingo Sangrento”.



Em 1990, para cobrir a comemoração dos 25 anos das manifestações em Selma, Gay Talese voltou ao Alabama, a serviço do New York Times. O texto a seguir é um dos capítulos de Vida de Escritor, e fala de como, apesar do Times ter publicado seu texto na íntegra, Talese ficou frustrado pela edição das fotografias. Assunto, não incomum em fotojornalismo.

de Gay Talese

Especial para The New York Times


SELMA, Alabama, 6 de março – Há 25 anos, depois de tomar emprestado um Cadillac rabo de peixe à agência fúnebre de sua família, nesta cidade outrora agrícola no centro-sul do Alabama, um jovem chamado Randall Miller reuniu-se a centenas de outros negros para atuar voluntariamente como motorista de ambulância na marcha pelos direitos civis que começaria em breve e se dirigiria à capital do estado, Montgomery [...]


Mas agora – um quarto de século depois do conflito na rodovia, que foi lembrado no último final de semana com a volta de veteranos da marcha – Selma demonstrou bastante progresso no que se refere à harmonia racial. E não apenas harmonia inter-racial, mas também, às vezes, amor inter-racial. Aqui, no último final de semana, aquele ex-motorista de ambulância, Randall Miller, atualmente com 51 anos, casou-se com uma branca de 38 anos, Betty Ramsey. Eles se casaram em presença de vinte amigos brancos e negros, na casa de Miller, num bairro integrado, ouvindo os vivas de milhares de pessoas que compareceram à cerimônia. [...]

Esses eram os parágrafos de abertura da matéria que eu tinha datilografado em meu quarto de hotel em Selma e passado por fax ao editor nacional em Nova York, esperando que saísse no Times da manhã seguinte. Eu não sabia, até a tarde desse outro dia, quando comprei um exemplar do Times no aeroporto de Atlanta antes de embarcar de volta, que os editores tinham publicado exatamente e na íntegra o que eu tinha escrito, imprimindo os oito primeiros parágrafos na metade inferior da primeira página, sob um título que ocupava três colunas: SELMA 1990: VELHAS CARAS E UM NOVO ESPÍRITO.

O resto de meu artigo de 2500 palavras, que descrevia a cerimônia do casamento e a recepção, assim como os eventos do 25º. Aniversário que tiveram lugar em toda a cidade, ocupou uma página inteira no interior do jornal. Fiquei contente com o espaço concedido a minha matéria, mas desapontado porque os editores não tinham publicado nenhuma foto do casamento. O Times tinha mandado uma de suas fotógrafas de Nova York para trabalhar comigo. Na noite anterior ao casamento, quando eu jantava com Randall Miller e Betty no Tally Ho, agradecendo por terem me incluído na lista de convidados, perguntei se podia levar comigo a fotógrafa do Times, Michele Agins. Eu a conhecera uma hora antes, no saguão do Holiday Inn; ela estava preenchendo sua ficha no balcão da recepção e eu estava saindo para o restaurante. Era uma bela jovem negra que já tinha trabalhado como fotógrafa da prefeitura de Chicago para o primeiro prefeito negro da cidade, Harold Washington. Eu não sei se isso me impressionou mais do que a Randall Miller, mas depois que eu mencionei esse fato, no jantar, ele disse que concordava que Michelle fosse ao casamento com sua câmera.

Na noite seguinte, parecia que ela estava se divertindo ao andar pela sala, à vontade e procurando não chamar a atenção, fotografando os convidados e as duas pessoas que eram o centro das atenções – Randall Miller, vestido de terno escuro com uma flor na lapela, e Betty Ramsey, que usava um conjunto de cetim branco desenhado por ela mesma e segurava um buquê de rosas e cravos. Depois que os noivos trocaram os votos de pé diante da lareira, o reverendo Charles A. Lett ergueu os braços e proclamou que a união deles “era um ato de vontade divina”. Enquanto Michelle registrava incansavelmente a cerimônia e a recepção que se seguiu com sua câmera, me alegrava pensar que suas fotos pareceriam ao Times provas convincentes daquilo que eu pretendia escrever. Era minha intenção dar a entender que mesmo naquela cidade, que devia sua identidade ao ódio racial, sem dúvida havia um espaço no qual moradores brancos e negros podiam encontrar uma causa comum, e esse espaço e essa causa, naquela noite específica, tinham convergido para a sala onde os recém casados eram brindados com champanhe por um grupo inter-racial de convidados.

Por que o Times não tinha dado uma foto do casamento? Na parte interna do jornal, onde meu artigo mencionava a passeata do jubileu de prata e citava alguns de seus participantes e testemunhas mais importantes, os editores tinham posto uma foto feita por Michelle de John Lewis e Hosea Williams, dois veteranos dos direitos civis, caminhando nostalgicamente pela ponte. Também publicaram a foto do prefeito Smitherman, de sessenta anos, sentado à sua mesa, com uma fileira de bandeiras penduradas atrás dele, inclusive uma da Confederação. Mas a foto principal da primeira página, em vez de complementar visualmente o que eu escrevera, mostrava uma negra de bruços na rodovia, cercada de soldados com capacetes equipados com cassetetes, armas e máscaras contra gás. A foto tinha sido feita em 1965, no Domingo Sangrento, por um fotógrafo da Associated Press, e olhando para ela, ali em Atlanta, eu tentava entender por que essa antiga radiofoto tinha sido escolhida em detrimento de uma foto do casamento, feita por um membro do Times designado para me acompanhar em Selma. Por que não mostraram a cidade numa atitude não racista pela mudança? Por que continuar ilustrando a política da vitimização?

Uma semana depois, numa recepção na Biblioteca Pública de Nova York, encontrei um editor do Times que veio dizer que tinha gostado de minha matéria sobre os recém-casados de Selma.

“Mas por que vocês “não publicaram uma foto deles?”, perguntei.

“Ah, um dia eu lhe direi”, disse ele.

“Não”, insisti, “diga-me agora.”

“Bem”, disse ele, “é que Gerald Boyd fez um comentário negativo sobre elas na reunião de editores”.

“E quem é ele?”

“É o responsável pela editoria metropolitana”, respondeu ele, acrescentando que Boyd era um jovem executivo afro-americano em ascensão na redação do Times, e tinha sido sua falta de entusiasmo pelas fotos de casamento que fizera seus companheiros brancos concordarem com ele.

Eu não teria levado a questão mais longe se alguns anos depois não tivesse aceitado um convite para participar de um debate sobre a cobertura jornalística do Times, patrocinado pelo Centro de Comunicação de Manhattan. Estavam comigo no palco quatro outros membros do painel; a duas cadeiras de distância, do outro lado do moderador, sentava-se Gerald Boyd. Era um homem na casa dos quarenta, de fala macia e rosto redondo, uma calva incipiente, óculos de osso e um fino bigode. Usava um blazer azul, camisa branca e gravata escura com o nó bem apertado no pescoço. Foi notavelmente articulado em suas primeiras considerações, falando baixo e com firmeza, sem pressa. Quando a reunião chegava ao fim, antes de abrir a sessão de perguntas do auditório, o moderador convidou os participantes a formularem perguntas entre si; foi quando me dirigi a Gerald Boyd e perguntei: “o senhor é o homem que impediu que a foto de minha matéria sobre o casamento em Selma saísse na primeira página do Times?”.

Ele pareceu perplexo. Um murmúrio correu pelo auditório.

“Sou”, disse ele, afinal.

“Por quê?”, perguntei levantando a voz.

“Era desinteressante!”, disse ele.

“Desinteressante!”, exclamei.

“Mostrar um casal integrado na primeira página não era notícia”, explicou. “A foto não representava nada novo.”

“Em Selma?”, peguntei.

Gerald Boyd virou-se para o outro lado, e o moderador, possivelmente percebendo o mal-estar dele, mudou de assunto. Outros temas foram levantados e discutidos durante uma hora ou mais, e no fim do evento, depois de apertar a mão do moderador, Gerald Boyd encaminhou-se direto para a saída.

Fonte: Gay Talese, Vida de escritor. Páginas 272 a 275. Ed. Companhia das Letras (2009).


terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Fotogenia


sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

NãodeixedelerNãodeixedelerNãodeixedeler

Altos e baixos de uma nação

Sai no Brasil livro de James Agee e Walker Evans que retrata EUA nos anos 30, na Grande Depressão




SÉRGIO D'ÁVILA., DE WASHINGTON

Se "As Vinhas da Ira", de John Steinbeck, foi o romance que melhor captou o espírito do tempo da Grande Depressão norte-americana, "Elogiemos os Homens Ilustres", do escritor James Agee e do fotógrafo Walker Evans, tem esse mérito na não ficção.

Com duas diferenças que favorecem o segundo livro, que sai agora no Brasil: embora tenha sido lançado em 1941, dois anos depois de "Vinhas da Ira", foi feito três anos antes deste; e, diferentemente do livro de Steinbeck, que é um romance clássico, "Homens Ilustres" rompeu os limites da linguagem jornalística da época.

Foi um dos precursores do gênero chamado jornalismo literário. Um precursor esquisitão, que daria mais no gonzo Hunter Thompson, de "Medo e Delírio em Las Vegas", do que no arrumadinho Gay Talese, de "Aos Olhos da Multidão".

No verão de 1936, Agee recebeu uma pauta da revista "Fortune": passar oito semanas vivendo com três famílias de trabalhadores rurais das fazendas de algodão do sul do país e retratar suas condições de vida brutais e miseráveis. Levaria com ele o fotógrafo Evans, então na folha de pagamento de um dos programas federais do presidente F.D. Roosevelt.

Lançada em 1930 pelo fundador da "Time", a "Fortune" era uma revista mais interessante que a atual (a capa da edição mais recente é "As dez melhores ações para 2010"), com uma "esquizofrenia editorial, que deu vigor criativo e visão crítica" à publicação, como escreve Matinas Suzuki Jr. no posfácio da edição brasileira do livro.

Agee se envolve pessoalmente com os personagens que retrata e aparece ele próprio como personagem. Usa pseudônimos, interrompe a narrativa com listas, citações e poemas, reproduz palavras pelo som, pelo cheiro.

Veja como descreve a casa de uma das três famílias: "A casa fica só Em frente da casa: sua estrutura geral Em frente da casa: a fachada O cômodo sob a casa O corredor Estrutura dos quatro cômodos Odores Nudez e espaço" Nesse sentido, o texto do repórter de 27 anos é mais radical do que as imagens do então já consagrado fotógrafo de 33, cuja intenção era fazer retratos que o próprio Evans uma vez descreveu como "literários, impositivos, transcedentes" -esse trabalho pode ser visto em exposição atualmente em cartaz no Masp, em São Paulo. É difícil discordar de Evans.

Já o título do livro foi tirado de um verso do "Eclesiastes" da "Bíblia" apócrifa, conjunto de livros não aceitos por religiões como a judaica e a protestante, e não por seu homônimo do "Velho Testamento", como se pensa, aquele mais conhecido pelos versos "Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade" e "Nada há de novo debaixo do sol".

É o versículo 1 do capítulo 44, que diz: "Vamos agora louvar homens famosos, e nossos pais que nos geraram". Ironicamente, o "Eclesiastes" estabelecido teria mais a ver com o espírito do livro do que o apócrifo, já que faz o elogio do trabalho do homem justo.

Gerações de escritores, fotógrafos e leitores vieram e foram, mas a terra permaneceu igual. Talvez não exatamente o sul pobre do Alabama, tratado no livro, mas lugares como a Cordilheira dos Apalaches, em Estados dos EUA como a Virgínia Ocidental, em que 68 anos depois não é difícil encontrar trabalhadores nas condições retratadas por Agee e Evans.


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ELOGIEMOS OS HOMENS ILUSTRES
Autores: James Agee e Walker Evans
Lançamento: Companhia das Letras
Preço: R$ 62 (454 págs.)

Fonte: Folha de SP, do dia 17/12/2009.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

sábado, 28 de novembro de 2009

4o. Distrito


.

sábado, 21 de novembro de 2009

Marx



A união faz a força. Mas não compra.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Buenos Aires - Havanna












Buenos Aires em novembro: viagem estranha, mas divertida! Andei de metrô e lenbrei do Walker Evans. Entenda-se...







quinta-feira, 15 de outubro de 2009

São Paulo, Walker Evans e Chris Marker


Exposição do Chris Marker, no MIS

Duas exposições legais de serem vistas em SP: Chris Marker, no Museu da Imagem e do Som, Walker Evans no MASP. E mais Matisse, na Pinacoteca, as fotos do Porto Seguro no Espaço Porto Seguro, fotos da Maison Européene de la Photographie, no Itaú Cultural, exposições no Museu da Casa Brasileira (fotos de tragédias e invasões). E, ainda, Bresson, no SESC Pinheiros. Já é um bocado de coisas para fazer...

Estive lá no feriado e me diverti bastante. (e nem vou falar sobre o Cauby, no bar Brahma...).

Duas coisas que me chamaram a atenção: um texto do Walker Evans, de 1972, muito a propósito:

“Peguei agora aquela camerazinha SX70 de brincadeira e fiquei muito interessado. Estou muito animado com ela... Mas, um ano atrás, teria dito que a cor é vulgar e não deveria ser utilizada em nenhuma circunstância... Com esta câmera, o trabalho acaba assim que se aperta o botão... Acho que é a primeira vez que se pode por uma máquina nas mãos de um artista e deixá-lo que se preocupe somente com a sua visão, seu gosto e sua mente.”

E outra, um texto do Chris Marker:

Nós trocamos olhares, como se diz, mas o que eles recebem em troca? Às vezes uma fração de segundo, às vezes um olhar comprido, sério; às vezes amigável, às vezes (raramente) hostil; e eu como um rápido batedor de carteiras fugindo com minha generosidade, certo de encontrar um lugar tranqüilo para abri-la à vontade, e me alegrar. E agora todos eles estão alinhados nesta parede como se estivessem esperando pelo esquadrão de fuzilamento ou o último Examinador, unidos como eles vão estar no dia do Julgamento supondo que haverá um e Deus não estará cansado de todos que, irmãos e irmãs finalmente, apesar de que alguns deles tiveram o cara do quadro ao lado atravessado na garganta.

Neste 1/50 de um segundo o trabalhador chileno sob Allende sabia que a fábrica nacionalizada era agora sua propriedade, o boxeador tailandês na lona sabia que ele atingiria o desafio dos Dez Milhões (eles não), a alemã esquerdista sabia que o seu lado tinha sido severamente batido nas pesquisas, o arqueiro coreano sabia que ele era o melhor na sua categoria, os três migrantes chineses sabiam que sem o homem que eles vieram a enterrar, a vida se tornaria mais dura a cada dia. Neste maligno, indefinido mundo, a velocidade do obturador parou o momento mais raro, um momento de certeza.


Fotos: Chris Marker




terça-feira, 29 de setembro de 2009

Carlos Mancuso




Parece que algumas coisas sempre existiram, nascidas de alguma origem súbita, incerta e não sabida. Ou talvez seja só nosso costume “industrial”, em que tudo é feito em escala, pré-fabricado em algum cantão chinês e adaptado aos lugares, mais ou menos na marra. Uma outra maneira de dizer a mesma coisa é: que ignorância a minha, que falta de curiosidade, quanta falta de “investigação”. Pode ser mais simples: as minhas poucas idas ao São Pedro.Ou então, pode ser só a falta de hábito de olhar para cima! Mas acho que é mais que isso...
Seja o que for, ontem fui fotografar para um perfil um senhor chamado Carlos Mancuso. Pintor, arquiteto, restaurador e boa praça, foi ele quem desenhou e restaurou o teto do Teatro São Pedro e, o que achei mais incrível, desenhou e projetou o imenso lustre que domina a platéia do teatro. O lustre e as pinturas que, acho, pensei existirem desde sempre.
Desculpada minha ignorância, liguei isso a um painel que fotografei outro dia sobre “questões do envelhecimento”. A pergunta era “o que significa envelhecer” e se incentivava os participantes a responder com um pequeno texto. Acho que, se tivesse tido mais coragem e tempo, teria escrito que algumas vezes envelhecimento se liga a esquecimento.
Foi a sensação que tive descobrindo e fotografando o Mancuso. E me dei conta, também, que este é um dos tantos medos que carrego comigo.

sábado, 26 de setembro de 2009

Guadalupe Miles e Pablo Tellezon


Na viagem de trem, de Puno a Cusco


Guadalupe Miles fotografando, Pablo mirando al sudeste.

Em agosto do ano passado, em uma viagem a Buenos Aires, vi numa exposição uma fotografia de alguém que havia conhecido muitos anos antes, em uma viagem pela Bolívia. Em Potosí, mais exatamente. Lá em cima descobri a "puna" ou o "soroche", o mal de altura. Também conheci os argentinos, que me encantaram para sempre. Um caso ("causo") com um casal deles, contei aqui. Marco, outro dia, me disse que leu e que havia ficado curioso de ver a foto de que falei. Disse ele, vê-la provaria - ainda que não se tratasse de dúvida alguma - tudo, deixaria tudo mais "real". Gostei de ele ter lido e gostei da idéia. Hoje fui procurá-la (procurá-los) e achei (cromos precisam ser olhados na folha, um a um). Achei, também, algumas outras fotos dessa viagem tão estranha, em 1998. Mundo pequeno e redondo.

Potosí

domingo, 20 de setembro de 2009

Walker Evans no MASP




"Fotógrafo da América Profunda", Walker Evans vai ter uma mostra em exibição no Masp, em SP, a partir de 1o. de outubro. Serão 120 imagens do norte-americano que viveu entre 1903 e 1975 e que é bastante conhecido pelo seu trabalho no interior dos EUA (o projeto F.S.A.) durante a depressão econômica dos anos 1930. Mas mais que isso, pelo seu olhar "objetivo" e "não sentimental", hoje Evans é uma das grandes referências para o que há de vínculo entre fotografia e arte contemporânea.

As fotos acima são de um trabalho que o fotógrafo produziu no interior dos metrôs de Nova York, com uma câmera escondida. Segundo Geoff Dyer, no livro O Instante Contínuo,

Em vista do impacto que Cega, de Strand, lhe causou, era inevitável que Evans tentasse um dia produzir algo equivalente - equivalente não só sentido de que Evans realmente fotografou um acordeonista cego em Nova York, mas também de que procurou utilizar o mesmo procedimento: fotografar pessoas sem que elas se dessem conta de sua presença.
Entre 1938 e 1941, Evans fez uma série de retratos de passageiros no metrô de Nova York. A essa altura, os inconvenientes de fazer instantâneos na rua tinham sido superados e era relativamente fácil fotografar, sem ser notado, à luz do dia. Nas condições de baixa luminosidade e de trepidação do metrô (onde era proibido fotografar semlicença da polícia), Evans enfrentou muitas dificuldades técnicas que se tornaram - ao menos em retrospecto - parte essencial do objetivo do projeto. Com uma câmera Contax de 35mm escondida sob o casaco (com o diafragma bem aberto, o obturador ajustado para 1/50 e as partes cromadas pintadas de preto), Evans (às vezes acompanhado pela jovem fotógrafa Helen Levitt - viajava no metrô e esperava até que, supunha, a pessoa diante dele estivesse corretamente enquadrada. Depois, utilizando um cavo disparador que corria pela manga do paletó, ele se firmava e batia a foto. Até revelar o filme, Evans não sabia com exatidão o que havia registrado. Em termos de composição correta, estava fotografando às cegas. Isso era parte da atração do projeto.
A idéia, disse Evans mais tarde, era imaginar que certas pessoas "tinham aparecido e, sem saber, se posicionado diante de uma câmera fixa e impessoal durante um determinado tempo, e que todas essas pessoas, enquadradas no visor, eram fotografadas sem a menor intervenção humana no momento em que o obturador era disparado". (...) "Eles baixam a guarda e deixam cair a máscara", observou ele, "mais ainda do que quando estão sozinhos no quarto (com um espelho), no metrô os rostos se acham expostos e indefesos".

sábado, 19 de setembro de 2009

Dia ruim


segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Duplas


Fotos: Flávio Dutra, Mercado Público de Porto Alegre

Coisa boa de feriado em casa é ler os jornais guardados "pra depois", juntar tralha que tava atrapalhando no "quartinho de estudar" e jogar fora e, de quebra, achar coisas semi-perdidas.
Nessas, encontrei uma pilha de revistas de fotografia prontas pra irem pro lixo e que, pra mim, tavam na mira do "um dia leio". D. Maria, a faxineira, parece que não tava mais acreditando nisso e tinha intenções menos nobres e mais realistas.
Buenas, salvei tudo (D. Maria vai ficar brava!) e, folheando uma que outra, encontrei esse texto aí de baixo. Talvez seja mesmo um pouco "romântico", mas tem coisa melhor?
Eu que digitei, o que significa que eventuais erros são meus e não da revista.


Dupla de dois, simples como feijão e arroz

Por Xico Sá*

Noves fora a nostalgia precoce, essa doença que nos pega com frequência, feito vírus de gripe, uma coisa é certa: a reportagem no Brasil está sentindo falta da parelha, do casal de pombos da notícia, a velha dupla repórter/fotógrafo, os xifópagos que fazem miséria quando estão na liga.Não estou aqui falando tão-somente de duplas de grife, tipo David Nasser & Jean Manzon da Cruzeiro dos velhos tempos. Trato da necessidade de fotógrafo e repórter andarem juntos, unha e carne, tocando de ouvido, entrosados, tabelinha de idéias, cerveja no boteco e... pimba!, grandes histórias nas páginas.Simples e fácil como empurrar bêbado em ladeira, pena que os jornalões tenham esquecido de prática tão necessária. Agora normalmente é assim: cada um faz a sua parte de maneira isolada. O jornalão manda o repórter, quando manda em viagem, e depois se vira para ilustrar a matéria como pode. Compra de frila, de agência, se vira.Nada contra frilas e agências, mas é incomparável, em reportagens, o rendimento de uma dupla com o resultado desse casório maluco que junta um texto vomitado aqui com uma foto baixada ali conforme foi possível comprá-la. Em alguns casos, você vê a mesma foto, mesmo num acontecimento banal, em todos os jornais. É o fim do princípio básico do jornalismo: o furo, o rombo, o extraordinário.O fim do velho grito "Extra! Extra! Extra", sempre hiperbolicamente rodrigueano e exclamativo no último!!!Aliás, o que mais perturba hoje um editor é a tal da exclusividade. Você repórter vai lá e diz aquele sonoro "SÓ NÓS TEMOS!" O chefe olha, reflete, e diz, burramente: "Então damos depois". O que se busca é o empate. O importante é não tomar furos, jamais dá-los. Se nós temos, o furo vai para as gavetas. Fica à espera para ser desovado num feriadão, um fim de ano, um Corpus Christi, o diabo a quatro...A dupla, nesse caso, é um problema.Um repórter e um fotógrafo trocando figuras, mergulhando no tema, unindo os repertórios de outras histórias é um perigo. Podem fazer misérias!

*Xico Sá, um dos últimos jornalistas românticos, acredita no óbvio: histórias boas gastam muita sola de sapato e são contadas pelas duplas de repórter-fotógrafo.

Texto originalmente publicado na revista Fotosite Fotografia, número 6, jun/jul/2005.


quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Da Folha (7) - Claudia Andujar, Marcados



Números identificavam os vacinados

FABIO CYPRIANO

DA REPORTAGEM LOCAL

Nos anos 80, artista fez mais de mil imagens dos ianomâmis, que sofreram com chegada de doenças depois de 1974. Claudia Andujar identificou índios sem nome e que se deslocam constantemente; "As coisas estão piores", diz artista sobre situação atual

Em 1944, aos 13 anos, na Transilvânia, Hungria, a fotógrafa Claudia Andujar percebeu que uma marca iria determinar o desaparecimento de muitas pessoas ao seu redor -pai, avós e seu primeiro namorado, Gyuri, todos carregavam a estrela de Davi em amarelo costurada na roupa.Num primeiro encontro numa praça pública, em junho daquele ano, os dois confessaram os sentimentos e se beijaram."Era o nascimento do amor", diz Andujar. Interrompido pela história que se conhece, o romance continuou visível apenas num retrato de Gyuri, que a artista carregou num medalhão que pendia em seu pescoço.Quase 40 anos depois, Andujar viu-se novamente envolvida com marcas, só que dessa vez era ela quem criava os sinais.Em 1981, junto de dois estudantes de medicina, ela deu início a um projeto de saúde entre os índios ianomâmi, na Região Norte do Brasil.Durante três anos, em distintos momentos e em difíceis recantos da selva amazônica, a pequena expedição vacinava comunidades que estavam fadadas a morrer pela contaminação com doenças trazidas pela invasão branca.Enquanto os estudantes vacinavam, Andujar fotografava os índios com números. "Como eles não usam o nosso sistema, não têm nome e são chamados pela relação de parentesco, nós passamos a numerá-los para criar uma forma de identificação", conta ela.Foram mais de mil retratos, realizados em mais de cem aldeias. No próximo dia 8, cerca de cem dessas imagens serão lançadas no livro "Marcados", com texto de Stella Senra, pela editora Cosac Naify, e serão vistas numa exposição com as fotografias na galeria Vermelho.

Anos 70

"Eu não via essas imagens como um trabalho artístico, era um projeto de saúde a favor dos ianomâmis", conta Andujar. Ela conhecera esses índios em 1970, quando realizava uma reportagem para a revista "Realidade" sobre a Amazônia."A publicação foi questionada pelos militares. Muitos jornalistas pediram demissão e eu decidi não mais trabalhar com fotojornalismo", conta a artista hoje, em seu apartamento na avenida Paulista.No ano seguinte, ela conseguiu uma bolsa da Fundação Guggenheim para voltar a encontrar os ianomâmis, até então isolados do contato."Eu queria entendê-los como povo e como cultura", diz ela, que registrou esse envolvimento em mais de 50 mil imagens, entre 1971 e 1977."Eu só voltava a São Paulo para revelar os negativos e ampliar as fotos", ri, como se relatasse um processo arcaico - o que de fato hoje é. Nesse período, contudo, ela se tornou testemunha de um processo de dizimação dos índios, pois com a construção da Perimetral Norte, em 1974, os ianomâmi entraram em contato com doenças como o sarampo e começaram a morrer em decorrência delas.Andujar tornou-se, então, militante da causa ianomâmi ao se identificar com sua história: da mesma maneira que ela se deslocou pelo mundo em busca de um território -nasceu na Suíça, viveu na Hungria e nos Estados Unidos até chegar ao Brasil, em 1955, eles também circulam por várias áreas, cada vez que a caça acaba ou o solo já não serve mais.Expulsa da região pela Funai, em 1977 ("Como eu visitava as aldeias onde muitos índios morriam, achavam que eu queria denunciar o governo"), ela passou a defender a demarcação do parque ianomâmi, o que foi conseguido de fato apenas no ano de 1992.E a saúde dos índios, melhorou? Andujar, que segue em contato com eles, mostra um documento do ano passado, enviado ao ministro da Saúde pela Associação Yanomami Hutukara. O registro aponta o recrudescimento da malária e mostra que o índice de crianças vacinadas de até 1 ano é de apenas 20%. "As coisas estão piores."

Série ajudou a fundamentar tema da 27ª Bienal de São Paulo, em 2006
A série "Marcados", de Claudia Andujar, foi vista pela primeira vez na 27ª Bienal de São Paulo, "Como Viver Junto", em 2006. Realizadas para um projeto de saúde, as imagens chegaram ao campo artístico na mostra que tematizava o rompimento de limites entre arte e vida, a partir de Hélio Oiticica. "A escolha de Marcel Broodthaers como um dos eixos da exposição me permitia realizar uma crítica ao museu e à exposição por meio do significado de montar e mostrar um acervo. Vejo os "Marcados" como uma enciclopédia pessoal que se tornou universal", avalia Lisette Lagnado, curadora da 27ª Bienal de São Paulo. O livro traz um texto da pesquisadora Stella Senra. Para ela, "a documentação [dos marcados] não está relacionada do mesmo modo com o ato de fotografar. Ela é uma exigência da ação (a luta pela demarcação, o cuidado com a saúde dos ianomâmis) -mas de uma ação que é eticamente inseparável do trabalho fotográfico". A publicação traz ainda trechos de um documento de 219 páginas, o "Relatório Yanomami 82", de 1982, que serviu de base para a criação do parque ianomâmi, dez anos depois.


MARCADOS
Autora: Claudia Andujar
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 79 (154 págs.)

MARCADOS
Quando: abertura no dia 8/9, às 20h; de ter. a sex., das 10h às 19h, e sáb., das 10h às 17h; até 4/10
Onde: galeria Vermelho (r. Minas Gerais, 350, SP, tel. 0/xx/11/3138-1520); livre
Quanto: entrada franca

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Da Folha (6) - Bom de pensar



Fotos: Flávio Dutra

Saber e experiência

CONTARDO CALLIGARIS

Por que visitamos museus? Procuramos experiência estética ou queremos nos cultivar?

Na sua próxima visita a um museu de arte, esqueça-se das obras e considere apenas os visitantes. Um bom número, talvez a maioria, não para diante de uma tela (por exemplo) sem antes ter lido a pequena placa com nome do artista, título e data. Bom, eles querem se cultivar, saber quem pintou, quando e o quê. Mas, dessa forma, muitos acabam, sobretudo, limitando sua experiência: ao constatar que o autor lhes é desconhecido, eles mal olham para a tela e passam à obra seguinte, enquanto, se o pintor for uma celebridade, contemplam com dedicação - as más línguas dirão que eles sentem-se assim "autorizados" a parar e contemplar. Os mais divertidos são os que adotam estratégias bizarras para dar uma espiada na placa sem que o amigo que os acompanha se dê conta e logo exclamam em voz alta, como se tivessem reconhecido a obra sem auxílio algum: "Aqui está o quadro de...". E há os grupos de turistas, forçados a correr de uma "obra-prima" a outra, atropelando obras menores, que talvez fossem para eles (quem sabe, só para eles) decisivas.De fato, o saber pode aprimorar nossa experiência estética; por exemplo, é bom apreciar uma tela de El Greco tendo conhecimento do fato de que ele pintou no século 16, pois talvez, sem isso, sua incrível ousadia expressionista nos comova menos.Inversamente, se privilegiarmos demais o saber, tenderemos a nunca sair de caminhos trilhados e, pior, a forçar nossa experiência no molde do pouco que sabemos. A primeira vez que visitei o Museu do Prado, em Madri, aos 14 anos, eu só queira ver a pequena sala onde estavam os quadros de Hieronymus Bosch. Ao entrar, fui hipnotizado pelo azul estranho e intenso do céu numa paisagem de Joachim Patinir, um pintor flamengo da mesma época, que eu desconhecia. Não li a placa, "atribuí" a Bosch o quadro de Patinir e saí feliz de ter descoberto "meu Bosch preferido", que era tão diferente dos quadros de Bosch mais conhecidos e reproduzidos. Se tivesse lido a placa, provavelmente eu teria me sentido na obrigação de esquecer o céu de Patinir e destinar minha atenção só aos quadros de Bosch; em obséquio ao meu saber, que era modesto e trivial, eu teria renunciado a uma experiência cuja lembrança ainda me encanta. Recentemente, visitei a exposição "In-Finitum", no Palazzo Fortuny, em Veneza (até 15 de novembro), que reúne obras e objetos de todas as épocas ao redor de um tema, "In-finitum", que, cá entre nós, é suficientemente vago para que qualquer coisa possa ser incluída na exposição. Instalações e quadros emprestados por museus e coleções particulares são assim misturados com objetos que enfeitavam a casa de Mariano Fortuny, quando ele estava vivo. Há de tudo: de um "conceito espacial" de Lucio Fontana a um banal ovo de avestruz. A regra (inusitada e atrevida) das exposições do Palazzo Fortuny quer que os objetos não sejam identificados por placa alguma, como se a gente estivesse visitando a casa de alguém. Para quem não aguenta o tranco, está disponível uma espécie de mapa que deveria permitir identificar os objetos expostos, mas cuidado: a duras penas.Para alguns, a visita se torna assim uma caça ao tesouro (as crianças adoram). Outros rejeitam o mapa e testam sua própria capacidade de atribuir algumas das obras a seus respectivos autores. Outros ainda, fiéis ao espírito da exposição, percorrem os andares do palácio permitindo-se uma experiência estética e meditativa, sem se preocupar em saber direito quais são os objetos nos quais eles esbarram.O catálogo obedece ao mesmo princípio da exposição: começa com as reproduções das obras expostas, sem nada que as identifique. Seguem os ensaios e, só em apêndice, a lista das reproduções.Antes de deixar o palácio, li o caderno em que os visitantes são convidados a escrever suas impressões. O leque vai de "Experiência única, por uma vez pensei e senti, em vez de querer saber quem fez o quê" até a (mais frequente) "Os curadores estão bêbados? Não se entende nada no mapa. Que tal uma plaquinha de vez em quando?".Pergunta: o que aconteceria em nós, visitantes, se os museus escondessem toda informação sobre as obras expostas? Moral da história: o debate entre saber e experiência, por mais que seja um clássico do pensamento pedagógico, é sem solução. A falta de saber compromete e empobrece a experiência, mas, sem a liberdade da experiência imediata, o saber se torna chato, estupidamente repetitivo e, no fundo, frívolo.


Publicado na Folha SP, do dia 27/08/2009.

P.S. (de Campo de Visão). No MoMA, vi uma exposição parecida, em uma sala que chamam de "Artist`s choice". Uma espécie de "o-que-um-artista-gosta-e-levaria-para-um-museu", curada pelo Vik Muniz. Ele, genial, não escolheu alguém especial. Escolheu obras diversas, um monte, de um monte de gente. E não colocava o nome (chamava isso de "Rebus"). Do mesmo jeito que o Calligaris narrou, entregavam um mapa na entrada para o caso de o visitante querer identificar quem/o quê. Conferi tudinho. Que careta eu, senti agora.