segunda-feira, 15 de junho de 2009

Fahrenheit 451

Na última parte do semestre da disciplina de Fotojornalismo da Unisinos os alunos apresentam seminários sobre temas diversos ligados a fotógrafos, fotojornalismo, documentarismo, fotografia e comunicação. Os primeiros grupos começaram as apresentações na semana passada. Pra mim, este é um momento que sempre pode ser brilhante: a possibilidade de estudar um assunto, aprofundá-lo, e, se formos generosos, bem compartilhá-lo com um "público" que, em princípio, deveria ser interessado, se não por fotografia, por temas relativos à comunicação, ao menos. E, ainda, de quebra, exercitar uma das coisas que nos faz MAIS humanos: sermos criativos. E evitarmos o que nos faz MENOS humanos: a rotina e sua filha pródiga, a modorra.
Um dos trabalhos apresentados foi sobre Sebastião Salgado, certamente uma referência quando se fala em fotografia brasileira, goste-se ou não. Em uma parte do trabalho, Natacha, Juliana e Bruno** pediram para que fotógrafos e pesquisadores brasileiros (e um português) escolhessem uma foto do "Tião" e escrevessem o porquê da escolha. Chamaram isso de "Fahrenheit 451" baseados na idéia do livro de Ray Bradbury (segundo a Wikipedia, "o romance apresenta um futuro onde todos os livros são proibidos, opiniões próprias são consideradas anti-sociais e hedonistas, e o pensamento crítico é suprimido. O personagem central, Guy Montag, trabalha como “bombeiro” - o que na história significa “queimador de livro”. O número 451 refere-se à temperatura, em Fahrenheit, a qual o papel ou o livro incendeia."). Ficou SEN-SA-CIO-NAL! Pedi a eles autorização para reproduzir aqui as fotos escolhidas e as opiniões que eles colheram. Vai abaixo.

**Compilação de depoimentos feita por Juliana Chaves, Natacha Kotz e Bruno Alencastro, a partir da pergunta: se você pudesse salvar (preservar para a prosperidade) apenas uma fotografia de todo o trabalho do fotógrafo Sebastião Salgado, qual imagem você guardaria? Por quê?

Izan Petterle
Colaborador da National Geographic Brasil
Sintetizar o trabalho do salgado em apenas uma foto é algo umtanto complicado para mim, até porque gosto muito da fase atual dele, a de documentar o que sobrou da natureza intocada do planeta. Inspira-me isso, a capacidade de reinvenção que um artista deve ter. Ele teve muita coragem para abandonar a temática social que o consagrou.
Penso que ele aparece como um Ansel Adams dos tempos modernos, suas imagens tem a classe e a maestria dos grandes mestres da fotografia, mas suas fotos são carregadas de uma forte ideologia contemporânea, como um manifesto engajado na preservação da nossa própria espécie, provavelmente a mais ameaçada de extinção.

Alexandre Belém
Editor do Blog Olha, Vê
A foto que escolhi é a de umas crianças vestidas de anjinhos em Juazeiro do Norte (CE), que foi feita em 1981. Escolhi ela por uma questão de memória. Essa foto é uma das primeiras que vi de Salgado.
Na realidade, quando conheci o trabalho de Salgado, por volta de 1991, comprei o livro As Melhores Fotos - Sebastião Salgado (Boccato Editores, 1992).
É uma compilação maravilhosa. Para mim, a melhor época de Salgado. O livro tem todas as clássicas que construíram o mito Salgado. São imagens soltas, leves e que nos mostra belas fotos e histórias. Se pudesse, salvaria o livro.

Ricardo Chaves
Editor de fotografia do jornal Zero Hora
Eu escolheria o ensaio do Sebastião Salgado sobre Serra Pelada. Seria difícil selecionar só uma, mas qualquer dessas duas podem representar o todo.
Escolho isso por ser no Brasil e também pelo significado que o garimpo tem como sonho. São (eram?) brasileiros miseráveis que buscavam uma vida melhor. Isso já não está lá, mas continua sendo um sonho nacional.

Luiz Eduardo Robinson Achutti
Fotógrafo e professor do Instituto de Artes (UFRGS)
Assim, sem pensar muito, nem voltar a olhar as fotos dele que há tempos não olho, eu lembrei daquela do gordo lambuzado em frente a uma roda enorme. O contraste é bom, de alguma forma ela cita uma outra grande foto do Lewis Hine que já foi citada pelo Chaplin no “Tempos Modernos”, se não estou enganado.
O Salgado evoca muito, e não por acaso, a documentary photography americana do princípio do século passado. O seu “Workers” é uma retomada, muitos anos depois do “Men at Work”. O Salgado é inteligente e esperto.

Maria Wagner
Editora de Cultura do Jornal do Comércio
Guardaria a imagem da trilha humana na Serra Pelada, que dá corpo à humilhante peregrinação de uma parte da população brasileira, escrava em 1986 e ainda hoje da política corrupta que impede a democrática distribuição de renda e o acesso à educação que liberta.
Essa fotografia emociona. É miséria humana serpenteando morro acima, num esforço danadamente além do puramente humano. Acho comovente.


Walter Firmo
Fotógrafo carioca
O trabalho de Sebastião Salgado é encantador sob todos os aspectos. É um humanista afeito as delações e tributos conferidos no sabor amargo da luz transcodificando certo olhar miserável, mas complacente na denúncia que ali ou aqui certa pessoa física sofre e se desampara.
Eu gosto de muita coisa dele, porém, fico com as fotos do livro de Outras Américas.

Eneida Serrano
Fotógrafa gaúcha
Provocada por teu projeto, saí a conhecer mais fotos de Sebastião Salgado. Como deve ter acontecido à maioria dos que se envolvem com o trabalho dele, escolher apenas uma foto torna-se muito difícil.
Pensei, primeiro, em preservar um pouquinho de esperança ou dignidade, nos olhares de algumas crianças ou alguns velhos fotografados por ele. Depois, achei melhor a eloqüência das fotos trágicas, mas belas por sua luz e sua composição perfeitas. Elas gritam, são definitivas.
No entanto, descartei-as também porque imagino que serão escolhidas por muitos, pois são fotos muito atraentes, instigantes.
Acabei optando pela pior imagem que vi, onde o ser humano é mostrado como lixo. É uma foto que supõe a presença de outro ser humano capaz de mover aquela máquina que remove e empilha corpos de refugiados, vítimas da fome ou de doenças, no caso em Ruanda, mas, principalmente, vítimas da nossa indiferença.
Escolhi essa foto com vergonha da nossa contemporaneidade. Queria ter um pouco de esperança no futuro ao manter essa horrível lembrança.

Fernanda Chemale
Fotógrafa gaúcha
Escolho a imagem desta criança menina, pela postura que ela tem, senhora de si.
Enquanto criança carrega a semente do homem. Enquanto menina e mulher guarda o legado cultural e a perpetuação.

Fernanda Rechenberg
Fotógrafa e Doutoranda em Antropologia Social
A obra do Salgado é extensíssima, e é mesmo difícil conhecê-la por completo, mas eu vou destacar aqui uma fotografia, uma das primeiras que conheci de sua obra, que sempre me impactou.
Escolhi esta fotografia, não por ser, no plano da racionalidade, uma “boa” fotografia. Até porque as imagens de Salgado nos trazem sempre lições de mestre no domínio da luz natural, do instante decisivo, na relação com o sujeito fotografado e outros aspectos importantes do fazer fotográfico.
Essa tampouco é uma foto “bonita”. Ela é triste. E impactante. Porque os grandes olhos dessas crianças não vêem apenas o estrangeiro que lhes retrata.
Esses três olhares falam da condição humana, no espanto de uma vida que ainda não se conhece, que está por vir, por enfrentar, nas duras condições da África. Nos indagam a possibilidade de continuarem existindo. Acho que é uma foto que nos toca em nossa humanidade.

Rodrigo Marcondes
Coletivo Garapa
Engraçado, nos tempos de faculdade eu tinha um pôster dessa foto do Salgado no meu quarto de república estudantil.
Era um retrato do livro Terra, que tinha sido exposto no Átrio da Universidade, e despertado em mim um olhar sobre a fotografia que eu nunca tinha tido.
O personagem da foto é um trabalhador rural, que dentro de um galpão ou armazém, olha fixamente para dentro da câmera. A expressão séria, quase ameaçadora, é reforçada pelo facão que ele segura na mão direita (se me recordo bem). A foto é vertical e revela o dorso forte e nú do homem, que veste uma calça jeans e nada mais.
Consigo ver o personagem da foto olhando pra mim, recordo até da luz que entrava pela janela e insidia sobre o pôster na parte da manhã ... Essa é a imagem que eu levaria para a posteridade.


Pio
CIA DE FOTO
A gente salvaria o trabalho Outras Américas. Se tivéssemos que salvar apenas uma? Tarefa difícil, pois um argumento não se sustenta por uma imagem!
Mas ficaríamos com a foto da "Santa Ceia", Brasil, 1981. Essa foto ilustra muito bem o trabalho dele. Sua culpa católica e composição sacra.
Tudo que ele fez depois, “Imagrations”, “Workers”, “Sem Terras”, serviu de alguma forma para confirmar o Outras Américas, e, em nossa concepção, nunca conseguiu superar esse trabalho.
De uma forma, sua história profissional ganhou força e efeitos maiores, mas se voltarmos a uma relação mais pura com a fotografia, mais "low profile" (se é que isso é possível!), o trabalho dele estagnou.
Cresceu em proporção, alcance, estrutura, mas ficou aquém do Outras Américas.
Observamos que somos admiradores da obra dele, mas quando detalhamos essa obra, enxergamos fases que nos emocionam mais.


Jorge Pedro Sousa
Investigador e professor de Jornalismo na Universidade Fernando Pessoa
Tecnicamente perfeita, esta fotografia profundamente humanista e até redentora de Sebastião Salgado evoca a suprema dignidade do ser humano mesmo em situações-limite.

3 comentários:

mateus disse...

Belo trabalho! Parabéns Natacha, Juliana e Bruno. Idéia simples, resultado muito legal.

Bruno Alencastro disse...

Flavio, faltou apenas tu referir um outro exercício que nos faz MAIS humanos: saber trabalhar em grupo (um dos princípios básicos para a vida em sociedade)...

Felizmente, o nosso grupo soube utilizar essa filosofia a nosso favor e, graças a isso, conseguimos apresentar um bom trabalho.

Legal que a recepção está sendo boa e, principalmente, você fez questão de dar visibilidade pra gente. Valeu! Mais uma vez, fica registrado o nosso "obrigado".

Anônimo disse...

Muito legal o resultado do trabalho. É sempre uma satisfação ver quando alunos conseguem ir além, e extrapolar o lugar comum. A associação com o Farenheit 451 ficou bárbara. Este livro já foi adaptado para o cinema há uns anos atrás, e está disponível em locadoras. É uma metáfora bastante atual, sem dúvida nenhuma. Outro filme interessante que podia ser associado a essas idéias é o japonês "Depois da vida", quando as pessoas que morrem tem que escolher apenas uma lembrança para levar consigo.
Parabéns ao grupo.

L.