quinta-feira, 28 de maio de 2009

Da Folha de SP (3) - Aprendendo a Ver


Centro Georges Pompidou


MoMA

Aprendendo a ver

MARCELO COELHO

Somos um bocado cegos diante do mundo, mas os fotógrafos nos ensinam a enxergar

A maior parte das pessoas vai a um museu de arte para ver, claro, quadros e esculturas. Digo "a maior parte" porque há também os que não têm grande interesse no assunto e simplesmente acompanham, puxados pelo braço, quem os levou até lá. Digo "ver" os quadros e esculturas, mas isso também é exagero. A gente passa por eles, toma conhecimento de que existem, mas nem sempre é fácil "ver" aquilo que está num museu. Às vezes o embolo é tão grande, que em pouco tempo nosso único desejo é sair dali e "ticar" aquele item da nossa congestionada agenda de turista. O fotógrafo brasileiro Alécio de Andrade (1938-2003) pertencia a uma categoria mais rara de visitantes. Durante 39 anos, frequentou o Museu do Louvre. Não para ver as obras, mas para fotografar quem as via.É uma fauna e tanto. Uma das poucas vantagens desses lugares de grande aglomeração turística é poder apreciar a variedade de rostos, de tipos, de atitudes e de idades reunidas em torno de um grande quadro - que surge então não apenas pelo que tem de bonito em si, mas pelo que traz de síntese de toda a humanidade. "O Louvre e Seus Visitantes", em cartaz até 21/6 no Instituto Moreira Salles de São Paulo, reúne várias das fotos tiradas por Alécio Andrade nessa espécie de pesquisa antropológica, muitas vezes irônica, e de vez em quando tomada de lirismo. A ironia aparece, por exemplo, quando três freiras são retratadas de costas, dentro de seus volumosos hábitos cinzentos, absortas na contemplação das Três Graças da mitologia grega, nuíssimas num quadro neoclássico.Cansaço, tédio, vivacidade, sono, discórdia e companhia conjugais se sucedem nas fotos de Alécio Andrade, como se, numa pose inconsciente, todo turista tivesse sido pintado, também, pelos mestres que se escondem do outro lado da parede. O mais bonito de tudo, eu acho, são os cabelos. O glorioso e desgrenhado fluxo de ouro que emoldura uma turista, o comportado corte preto de outra, a surpresa de uma maria-chiquinha fulgurante, o empasto uniforme de uma menina triste como um anjo, tudo lembra e revive as pinceladas, as ventanias, os pudores dos Botticellis e Watteaus, quando fixaram na tela o rosto de tantas mulheres, hoje transformadas em pó. Fotos de pessoas de costas: este é um dos temas do livro brilhante do escritor inglês Geoff Dyer, "O Instante Contínuo", lançado recentemente pela Companhia das Letras.Trata-se, como diz o subtítulo, de "uma história particular da fotografia". Em vez de seguir rigorosamente a cronologia, o autor escolhe temas que possam nos guiar através de um labirinto de imagens, de percepções, de personalidades e de momentos da história do século 20.

Fotos de cegos
Fotos de cegos tocando sanfona. Fotos de multidões usando chapéu. Fotos de escadas. De cercas brancas. De janelas. Comparando, com essas chaves sucessivas, as obras de Paul Strand, de André Kertész, de Edward Weston ou de Walker Evans, o livro de Geoff Dyer é uma maravilha de astúcia, de humor e sensibilidade. Ele evita as armadilhas do formalismo técnico, do sociologismo e do psicologismo, sabendo misturar todos os enfoques sem nunca perder a mão.É difícil ver um crítico capaz de combinar tanta imaginação e senso de realidade num único parágrafo, numa descrição breve de uma obra de arte. A história da grande depressão econômica dos anos 1930, escreve Dyer, "pode ser contada pelas fotografias dos chapéus masculinos".Todos os homens pareciam iguais nas fotos daquela época, porque os chapéus tendiam a uniformizá-los. Antes da crise, chapéus eram sinais de prosperidade e de igualdade. As fotos de 1930 passam a revelar outras coisas: concentração de força política numa manifestação de operários; penúria extrema a pesar sobre a cabeça de um lavrador; anonimato, desistência; último instrumento de trabalho de um mendigo, à espera de esmolas numa esquina.O mendigo, numa foto de John Vachon tirada em 1937, era cego. O fascínio dos fotógrafos pelos cegos é mais do que compreensível. Os turistas do Louvre, retratados por Alécio Andrade, não são muito diferentes desses cegos; de resto, na maior parte do tempo somos todos um bocado cegos diante do mundo. Mas os fotógrafos servem exatamente para nos ensinar a ver; Geoff Dyer é um daqueles críticos que fazem isso também.PS - Na semana passada, escorreguei no latinório. Escrevi "pacta sum servanda" (os contratos devem ser respeitados) mas o certo é "sunt", não "sum".


coelhofsp@uol.com.br

Fonte: Folha de SP, de 27/05/2009.

P.S. de Campo de Visão: sempre gostei, tanto quanto de ver tudo o que via, de fotografar em museus. Fiz as fotos desta postagem, também, mais olhando para os lados do que para o que devia (!) olhar.


Centro Cultural Belém, Lisboa


Museu d`Orsay


Fundação Henri Cartier-Bresson


Louvre


Museu Rodin


Centro Georges Pompidou


Museu d`Orsay


Louvre


Centro Cultural Belém, Lisboa


Centro Georges Pompidou


Centro Cultural Belém


Fundação Henri Cartier-Bresson


Louvre


Aliança Fancesa, Buenos Aires


Centro Cultural Recoleta


Memorial aos Desaparecidos, Buenos Aires


Museu d`Orsay


Museu d`Orsay

2 comentários:

Mari Lopes disse...

Que bom que é olhar para onde não devia...
As fotos são lindas, como sempre.
Bjos Mari.

Anônimo disse...

Legal as fotos dos espectadores dos museus. Traz algo de inusitado a nossa visão desses museus, dando nova dimensão às obras. Gosto de fotos assim. Persigo as crianças em frente as obras, tenho algumas do Louvre e no D'Orsay.

L.