quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Bang bang



Um dos livros mais interessantes sobre fotojornalimo, situações de conflito e fotografia se chama Clube do Bang Bang. Conta a história de quatro fotógrafos sul-africanos em Soweto no período do fim do Apartheid, no começo dos anos 90. O livro, escrito por Greg Marinovich e João Silva, conta histórias e uma visão da história daquele momento da África do Sul. Os outros dois fotógrafos do grupo (que na verdade não era um "grupo" formal e sim quatro amigos em uma mesma situação de trabalho) eram Kevin Carter e Ken Oosterbroeck. Oosterbroeck morreu durante um tiroteio, nove dias antes das primeiras eleições democráticas e não raciais, e Carter (autor da discutida foto da criança sudanesa ao lado de um abutre) suicidou-se em meados dos anos 90. Um desmistificador (ainda que delicado) obituário de Carter, publicado na revista Time, em 1994, pode ser lido aqui.

O blog do NY Times publica aqui a história deste livro e destes fotógrafos. Além disso, apresenta um video com imagens narradas pelos dois remanescentes do grupo, Marinovich e Silva.

O livro foi lançado em português alguns anos atrás, pela Companhia das Letras. É facilmente encontrável no Estante Virtual.

Está em fase de finalização (com lançamento previsto para 2010) um filme, dirigido por Steven Silver, com roteiro adaptado do livro.

P.S.: No próximo sábado (22/08, 17h) tem Pipoca e Fotografia no Projeto Contato. Vamos projetar o filme Abaixando a máquina - ética e dor no fotojornalismo carioca. Para a conversa e o chimarrão, os convidados serão Daniel Marenco (da Zero Hora), Gabriela Di Bella (do Jornal do Comércio) e o Mateus Bruxel (do Correio do Povo).

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Exposição no MARGS


Fotos: Flávio Dutra

Cobrindo uma pauta para o Jornal da UFRGS, fui fotografar a exposição comemorativa ao ano França no Brasil, no Museu de Artes do RGS. Algumas coisas me atiçaram a curiosidade:

1. achei que veria mais gente por lá. Fui três vezes ao MARGS e nunca vi muita, muita gente. Certamente está bem visitado, mas tinha impressão que veria ainda mais público;

2. uma coisa engraçada talvez, querida até, mas também uma indicação da nossa "falta de hábito" com as coisas da "grande cultura": as pessoas fazem fila para ver os quadros. Vão seguindo a linha amarela que demarca o espaço possível de aproximação e a usam como uma guia. Quando alguém para para olhar um pouco mais detidamente, os que vêm atrás param também;

3. o recorte foi amplo, dentro da idéia do realismo e da idéia de "França". Van Gogh certamente não é francês e a razão para estar na mostra é que morou e produziu na França. Fiquei pensando se é só uma boa justificativa ou se realmente faz sentido. Ou se não é só uma (ótima!) maneira de termos um Van Gogh aqui (isso vai longe de ser uma reclamação, apenas uma rápida tentativa de pensar "o recorte" da curadoria).

4. por fim, duas curiosidades: estranhei que me permitiram usar flash, se precisasse. E um quadro, do Giacometti, não pode ser fotografado pois a exposição não tem direito de uso de imagem.

Republico abaixo uma coluna do Marcelo Coelho, escrita por conta das fotos em museu - principalmente no Louvre, que foram tema de uma exposição (e trabalho de uma vida) do Alecio de Andrade. Esta exposição esteve em cartaz no Instituto Moreira Salles, em Porto Alegre, até o último dia 27/07.

Aprendendo a ver

MARCELO COELHO

Somos um bocado cegos diante do mundo, mas os fotógrafos nos ensinam a enxergarA maior parte das pessoas vai a um museu de arte para ver, claro, quadros e esculturas. Digo "a maior parte" porque há também os que não têm grande interesse no assunto e simplesmente acompanham, puxados pelo braço, quem os levou até lá. Digo "ver" os quadros e esculturas, mas isso também é exagero. A gente passa por eles, toma conhecimento de que existem, mas nem sempre é fácil "ver" aquilo que está num museu. Às vezes o embolo é tão grande, que em pouco tempo nosso único desejo é sair dali e "ticar" aquele item da nossa congestionada agenda de turista. O fotógrafo brasileiro Alécio de Andrade (1938-2003) pertencia a uma categoria mais rara de visitantes. Durante 39 anos, frequentou o Museu do Louvre. Não para ver as obras, mas para fotografar quem as via.É uma fauna e tanto. Uma das poucas vantagens desses lugares de grande aglomeração turística é poder apreciar a variedade de rostos, de tipos, de atitudes e de idades reunidas em torno de um grande quadro - que surge então não apenas pelo que tem de bonito em si, mas pelo que traz de síntese de toda a humanidade. "O Louvre e Seus Visitantes", em cartaz até 21/6 no Instituto Moreira Salles de São Paulo, reúne várias das fotos tiradas por Alécio Andrade nessa espécie de pesquisa antropológica, muitas vezes irônica, e de vez em quando tomada de lirismo. A ironia aparece, por exemplo, quando três freiras são retratadas de costas, dentro de seus volumosos hábitos cinzentos, absortas na contemplação das Três Graças da mitologia grega, nuíssimas num quadro neoclássico.Cansaço, tédio, vivacidade, sono, discórdia e companhia conjugais se sucedem nas fotos de Alécio Andrade, como se, numa pose inconsciente, todo turista tivesse sido pintado, também, pelos mestres que se escondem do outro lado da parede. O mais bonito de tudo, eu acho, são os cabelos. O glorioso e desgrenhado fluxo de ouro que emoldura uma turista, o comportado corte preto de outra, a surpresa de uma maria-chiquinha fulgurante, o empasto uniforme de uma menina triste como um anjo, tudo lembra e revive as pinceladas, as ventanias, os pudores dos Botticellis e Watteaus, quando fixaram na tela o rosto de tantas mulheres, hoje transformadas em pó. Fotos de pessoas de costas: este é um dos temas do livro brilhante do escritor inglês Geoff Dyer, "O Instante Contínuo", lançado recentemente pela Companhia das Letras.Trata-se, como diz o subtítulo, de "uma história particular da fotografia". Em vez de seguir rigorosamente a cronologia, o autor escolhe temas que possam nos guiar através de um labirinto de imagens, de percepções, de personalidades e de momentos da história do século 20.

Fotos de cegos
Fotos de cegos tocando sanfona. Fotos de multidões usando chapéu. Fotos de escadas. De cercas brancas. De janelas. Comparando, com essas chaves sucessivas, as obras de Paul Strand, de André Kertész, de Edward Weston ou de Walker Evans, o livro de Geoff Dyer é uma maravilha de astúcia, de humor e sensibilidade. Ele evita as armadilhas do formalismo técnico, do sociologismo e do psicologismo, sabendo misturar todos os enfoques sem nunca perder a mão.É difícil ver um crítico capaz de combinar tanta imaginação e senso de realidade num único parágrafo, numa descrição breve de uma obra de arte. A história da grande depressão econômica dos anos 1930, escreve Dyer, "pode ser contada pelas fotografias dos chapéus masculinos".Todos os homens pareciam iguais nas fotos daquela época, porque os chapéus tendiam a uniformizá-los. Antes da crise, chapéus eram sinais de prosperidade e de igualdade. As fotos de 1930 passam a revelar outras coisas: concentração de força política numa manifestação de operários; penúria extrema a pesar sobre a cabeça de um lavrador; anonimato, desistência; último instrumento de trabalho de um mendigo, à espera de esmolas numa esquina.O mendigo, numa foto de John Vachon tirada em 1937, era cego. O fascínio dos fotógrafos pelos cegos é mais do que compreensível. Os turistas do Louvre, retratados por Alécio Andrade, não são muito diferentes desses cegos; de resto, na maior parte do tempo somos todos um bocado cegos diante do mundo. Mas os fotógrafos servem exatamente para nos ensinar a ver; Geoff Dyer é um daqueles críticos que fazem isso também.

coelhofsp@uol.com.br

Fonte: Folha de SP, de 27/05/2009.






quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Primeiro contato


Domingo passado, procurando fotos que sabia que existiam e não sabia onde andavam, me deparei com este contato. Pra quem não sabe (não é crime, isso é mesmo coisa "antiga"!) as folhas de contato eram a primeira relação "positiva" do fotógrafo com suas imagens (meio ruim dizer isso, mas, posto assim, o filme era a primeira relação "negativa" com as imagens...). Importante pra mim, este contato é o resultado do primeiro filme que fotografei, no primeiro curso de fotografia que fiz, com a primeira câmera que tive. Uma câmera Praktica MTL3, de fabricação da Alemanha Oriental, com lente de rosca. (Pensei em explicar "Alemanha Oriental" ou "lente de rosca", mas achei que ia começar a me deprimir se seguisse nessa linha...). Depois, tive uma Nikon FM, uma F100 (foi o fim do meu mundo analógico), uma Nikon D200 e agora uma D700. Não foram muitas, pensando assim. Mas me ensinaram muito (sobre mim e sobre o mundo).
Mas queria postar mesmo era esse texto do Veríssimo que saiu na ZH desta semana. Sinto falta do tempo no laboratório fazendo contatos. Do topete também.
Houve uma época - Luis Fernando Veríssimo
Um dia falaremos do tempo em que se revelavam fotos e as crianças não nos entenderão. Perguntarão “Como, ‘revelava’?”, e contaremos que levávamos os rolos de filme para serem revelados, e só então sabíamos como as fotos tinham “saído”, se nenhuma cabeça tinha sido cortada e nenhuma paisagem reduzida a um borrão indecifrável. E aumentará a perplexidade das crianças. “Rolo?”. “Filme?”. Reagirão ao fato de que houve uma época em que a distância entre o “clic” e a foto pronta podia ser de semanas como hoje reagimos à lembrança, por exemplo, de que já existiu uma coisa chamada Gumex. Quem se lembra do que era Gumex que levante o dedo, se ainda tiver forças. Usei muito Gumex. Era uma espécie de gelatina cor-de-rosa que se aplicava ao cabelo para fixar o penteado. Vendia-se em potes ou em pó, para sua mãe misturar com água. O cabelo ficava duro. O Gumex não apenas mantinha seu topete armado em qualquer ventania, como servia de proteção contra eventuais objetos caídos do céu. Um problema: depois de passar o Gumex, você tinha poucos segundos para ajeitar o topete de modo a assegurar o máximo efeito, pois o endurecimento era rápido. Não havia tempo para muita criatividade.
Ninguém precisa mais esperar para ver suas fotos reveladas e as velhas câmeras com rolos de filme seguem o caminho do Gumex para o esquecimento, mas as novas câmeras não tornaram o ato de fotografar muito mais fácil, pelo menos para os recém-chegados ao mundo digital. Como bem sabe quem já teve que esperar, fazendo pose, que um fotógrafo descobrisse como funcionava a câmera digital de outro.
– É só apertar o botão.
– Qual?
– O da direita.
– Minha direita ou a sua?
– A sua, a sua.
– Não aconteceu nada.
– Tem que ficar apertando.
– Pronto. Deu. Ou não deu?
– Eu não vi o “flash”.
– Tinha que ter “flash”?
– Tinha. Tenta de novo.Clic.– Oba. Agora foi.
– Deixa ver como ficou...
– Acho que ficou boa.
– Você cortou a minha cabeça!
É verdade que as novidades nem sempre fazem esquecer o que havia antes. Como prova a volta do disco de vinil, quando parecia que o CD era definitivo.Além de, dizem, o vinil gravar coisas que o CD não grava, deve haver um pouco de nostalgia nessa volta ao passado. Eu usaria de novo o Gumex, se ainda existisse. Mas cadê o topete?
* Fonte: Jornal Zero Hora, publicado em 3/08/2009.
P.S. Meu primeiro curso de fotografia foi 1994, com o grande Marcelo Amaral, no SENAC da Cel. Genuíno, no tempo em que se fazia fila de madrugada pra conseguir vaga por lá. As fotos foram feitas (mais reminiscências...) quando uma turma de fotografia ainda conseguia ir à Redenção, tranquilamente, fotografar.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Para Saul Leiter*




Comecei a fotografar porque gostava de desenhar com o olhar. Gostava de relacionar elementos da cidade de maneira que parecessem outras coisas, não as que eu efetivamente (!) via. Por exemplo, gostava de caminhar olhando para cima, para ver como as linhas do teto dos prédios se juntavam e que formas apareciam. Até aí, fotografava sem câmara. Quero dizer, muito tempo depois me dei conta que “fotografava”.
De verdade, comecei a fotografar porque precisava me concentrar. Daí a perceber que não podia haver concentração maior do que quando estava olhando pelo visor da câmera foi um pulo. O mundo enquadrado era muito mais fácil que o mundo amplo, aberto, binocular. Além de monocular, preferia as teleobjetivas. Aproximavam tudo e, ao mesmo tempo, mantinham tudo a distância. Paradoxal. E mais paradoxal é que eu não gostava. Achava que fotografia “de verdade” exigia relacionamento, proximidade, troca. E não me satisfazia. Nunca me satisfazia com o que fotografava. Achava “relacionamento, proximidade, troca” um grande mistério. Uma vez, Beatriz me disse que minhas fotografias eram como um olhar “através”. Não gostei. Não queria olhar “através”. Queria estar dentro, olhar “de dentro”, próximo, e não “espiar”. Assim era fotografia, para mim.
Comecei a pensar diferente em uma viagem, quando vi uma exposição de um fotógrafo de quem nunca havia ouvido falar. Saul Leiter. Fotógrafo norte-americano dos anos 50, que fotografava nas ruas e em cor, fato raro na época. Como eu, e bem antes, Leiter fotografava “através”. Foi quando me dei conta que estava querendo ser outra coisa, outra pessoa, que não conseguia reconhecer em mim, uma forma, um jeito. Que estava fazendo força para olhar para o lado, para o que eu não era, em vez de reconhecer como eu olhava. Simples e complexo: olhar como eu olho. Demorei muito para me dar conta de como olho. E mais difícil que isso é, depois de descobrir, não “regrar” a maneira de olhar e, para sempre, ver tudo da mesma maneira. Para mim, fotógrafo, seria, quase, morrer.
Com respeito à técnica, gosto de me exigir quando fotografo. Gosto de enquadrar e dali, do enquadramento da hora da obtenção, ter a fotografia. Acho que é uma mania de quem começou analogicamente. E acho que digo isso também com um certo “orgulho”, antigo provavelmente. Um orgulho de dizer que as fotos destas páginas são assim, sem cortes, sem manipulações, só com os tratamentos que toda fotografia digital exige. Fotografia nunca foi a realidade. Mas, agora, além disso, precisa ser afirmada para, ao menos, ter um mínimo de credibilidade possível. Tempos bicudos esses...
* Texto e fotos publicados na Revista Magis (http://www.unisinos.br/magis/), da Unisinos, em julho/2009, na coluna "Sob a Luz (11)". (Publicado na revista com pequenas alterações, suficientes para que tudo pareça muito diferente. Ai, edição...)





quinta-feira, 9 de julho de 2009

Chris Marker (2) - uma entrevista


Foto: Chris Marker (Paris, maio 1968)


Chris Marker, em uma visita às filmagens de O Sacrifício, de Andrei Tarkovsky (Foto: Lars-Olof)


A entrevista abaixo foi publicada no jornal francês Liberation e traduzida por Marilia Martins, no blog Diário de NY (http://oglobo.globo.com/blogs/ny/post.asp?cod_Post=76215)


Uma entrevista rara de Chris Marker

São raríssimas as entrevistas de Chris Marker. Aos 81 anos, vivendo em Paris, esse cineasta francês nascido em Neuilly-sur-Seine continua a se aventurar por novos meios, misturando fotografia, cinema, vídeo, instalação, CD-Rom. A obra de Marker é das mais extensas e variadas. Ele fez parcerias notáveis com Alain Resnais, em “Les statues meurent aussi”, de 1953, e em “Nuit et brouillard”, de 1955. Tornou-se internacionalmente conhecido com “La Jetée”, de 1962, um filme de ficção científica feito como uma série de fotogramas imóveis e um texto-ensaio sobre as relações entre tempo e imagem. Passou pelo cinema militante dos anos 60 e 70 com documentários políticos, como “La sixième face du Pentagone” (de 1968, sobre as manifestações contra a guerra do Vietnem) e os filmes da série “On vous parle” (inclusive com dois filmes feitos no Brasil, tematizando a ditadura militar, a tortura e a resistência armada, “On vous parle du Brésil: torture (1969) e “On vous parle du Brésil: Carlos Marighella”, de 1970).
Nos anos 80, ele dirigiu um dos marcos do documentário experimental, “Sans soleil” (de 1983, já lançado no Brasil em DVD). Nos anos 90, Marker se dedicou aos filmes em forma de poema, como na série de curtas “Bestiaire” _ “Chat ecoutant la musique” (que está no youtube); “An owl is an owl is an owl” e “Zoo piece” _, aos filmes em forma de ensaios, como “Le tombeau d’Alexander” (homenagem póstuma ao cineasta russo Alexander Medvedkin, feito em 1992 e já disponível em DVD), “Une journée d’Andrei Arsenevich” (uma homenagem a outro cineasta russo, Andrei Tarkovsky, morto em 1986). Em 1998, Marker produziu um CD-Rom interativo chamado “Immemory”, hoje difícil de ser encontrado, produzido pelo Centre Georges Pompidou. Nos anos 00, ele filmou “Les Chat perchées” (The case of the grinning cat”, em inglês, um documentário sobre um grafiteiro cuja marca registrada era o desenho de um gato, que apareceu em murais da cidade de Orleans, depois em Paris e em várias outras cidades européias. E criou uma vídeo instalação para o MOMA, em 2005, intitulada “Owls at noon prelude: the hollow man”, inspirado num poema de T. S. Eliot.

ENTREVISTA/CHRIS MARKER

LIBERATION: Cinema, fotonovela, CD-Rom, instalação de vídeo... Existe algum meio que você não experimentou?
MARKER: Sim, gouache.
LIBERATION: Por que você concordou que apenas alguns de seus filmes fossem lançados em DVD e como fez a escolha?
MARKER: Vinte anos separam “La Jetée” de “Sans soleil”. E outros vinte anos separam “Sans Soleil” de hoje. Nestas circunstâncias, se eu fosse falar em nome da pessoa que fez esses filmes, não seria uma entrevista, mas um debate. Eunão acho que escolhi ou aceitei: alguém falou em fazer e foi feito. Eu já sabia que há certa correspondência entre esses dois filmes, “La Jetée” e “Sans soleil” e não precisava explicar isto. Até que eu encontrei uma nota anônima sobre meus filmes, publicada num programa em Tóquio, que dizia: “Breve a viagem terá um fim. E então nós vamos saber se a justaposição de imagens faz algum sentido. Vamos entender que rezamos com um filme como quem está numa peregrinação, a cada vez estamos novamente diante da morte: no cemitério de gatos, diante de uma girafa morta, ao lado de kamikazes no momento do salto, em frente a guerrilheiros mortos em combate. Em “La Jetée”, o experimento com o futuro termina com a morte. Ao tratar do mesmo tema, vinte anos depois, Marker supera a morte com a oração”. Quando li isso, escrito por alguém que eu não conheço, que não sabia como fiz aqueles filmes, senti uma emoção e percebi que “alguma coisa” havia, afinal, acontecido.
LIBERATION: No CD-Rom “Immemory”, lançado em 1999, você disse que havia encontrado um meio ideal para o seu trabalho. O que você acha do DVD?
MARKER: No CD-Rom, o importante não é a tecnologia e sim a arquitetura, em forma de árvore, na qual de um mesmo caule saem vários galhos, várias possibilidades diferentes de jogo. Vamos agora fazer DVD-Roms. A tecnologia do DVD é soberba, mas nem sempre é cinema. Godard definiu de uma vez por todas: no cinema, você levanta os olhos para a tela; na televisão, você baixa os olhos para o monitor. E ainda há a questão do projetor: as duas horas de uma sessão de cinema são passadas no escuro. É a porção noturna que fica junto a nós, que fixa a memória de um filme de um modo bem diferente de um filme filme num monitor de TV ou de computador. E vamos ser honestos: é bem diferente. Assite outro dia “Um americano em Paris” na tela do meu iBook e quase redescobri a luz que eu havia sentido em Londres, em 1952, quando estava filmando com Alain Resnais e Ghislain Cloquet “Les statues meurent aussi”... Nós começávamos a filmar todos os dias, depois de ver a sessão matinal, das 10h, de “Um americano em Paris” num cinema da Leiscester Square. Eu achei que havia perdido aquela luz para sempre, taé que revi o filme no computador.
LIBERATION: A democratização dos meios de filmagem (DV, edição digital, distribuição via internet) seduz um cineasta socialmente engajado como você?
MARKER: Esta é uma boa oportunidade para eu me livrar deste rótulo. Muita gente acha que “engajado” significa “político”, e a política, a arte do compromisso (que é o que deveria ser porque se não há compromisso, existe apenas a força bruta, da qual temos tantos exemplos atualmente), me entedia profundamente. O que me interessa é a história. A política me interessa apenas na medida que carrega a marca da história no presente. Com uma curiosidade obsessiva (que eu identifico com alguns dos personagens de Kipling, com o Elephant-boy de “Just-so stories”, por sua curiosidade insaciável), eu continuo a perguntar: como as pessoas conseguem viver neste mundo? E vem daí a minha mania, de ver como as coisas são neste lugar ou naquele. Por muito tempo, aqueles que eram melhor posicionados para “ver o que estava acontecendo”, não tinham acesso aos meios para dar formas às suas percepções, e a percepção sem forma é enfadonha. Agora, de súbito, esses meios estão acessíveis. Para gente como eu, é um sonho que se tornou realidade. Escrevi sobre isto num folheto que saiu no DVD do meu filme. Uma cautela necessária: a democratização dos meios ainda carrega constrangimentos financeiros e técnicos, e não nos desobriga da necessidade do trabalho.Comprar uma câmera de DV não confere a alguém, magicamente, o talento para fazer filmes que ele não tenha, nem fazer desaparecer a preguiça daqueles que não querem se interrogar para saber se esse talento existe ou não em si mesmos. Você pode miniaturizar o quanto quiser o equipamento, mas fazer um filme existe muito trabalho e uma boa razão para fazer isto. Esta é a história de cineastas, como os que se juntaram no grupo Medvedkin, jovens operários que, no período pós-68, tentaram fazer filmes sobre suas vidas, e que tentaram alcançar algum recurso técnico, com os meios que dispunham na época.Como eles reclamavam: “A gente chega em casa depois do trabalho e você ainda nos pede para trabalhar mais!” Mas eles perseveraram e você deve reconhecer que algo aconteceu ali, porque 30 anos depois nós os vemos apresentar seus filmes no Festival de Belfort,diante de uma platéia muito atenta. Os meios disponíveis na época eram o filme 16mm mudo, o que representava três minutos de rolo de filme, um laboratório, uma mesa de edição, alguma forma de adicionar o som na edição, tudo o que você tem hoje dentro de uma pequena caixa do tamanho da palma da mão. Eles deram uma lição de modéstia para os jovens de hoje, que disperdiçam recursos, assim como os jovens daquela época aprenderam sua lição ao se juntarem num grupo sob inspiração de Alexander Ivanovitch Medvedkin e seu cinema-trem. Medvedkin foi o cineasta russo que, com os meios do seu tempo (filme 35mm, laboratório, mesa de edição, tudo instalado num trem) saiu filmando nas locações mais diversas, levando os filmes aos lugares mais distantes. Medvedkin inventou em 1936 a televisão: filmava durante o dia, revelava e editava de noite, e passava no dia seguinte para as pessoas que ele havia filmado (e que muitas vezes participavam da edição). Acho que isto é fabuloso e ele não foi sequer mencionado na "História do cinema", escrita por George Sadoul, livro considerado naquela época a “bíblia do cinema soviético”. Os trabalhadores que eu filmei na Rodésia em 1967 eram bem parecidos aos kossovares que eu filmei em 2000: nunca tinham visto televisão. Para minha surpresa, certa vez estava explicando a edição de "Encouraçado Potemkim" para um grupo de aspirantes de cineastas na Guiné-Bissau, usando velhos rolos de filmagem. Agora, aqueles cineastas estão tendo filmes selecionados para o Festival de Veneza. Fiquei impressionado com um musical de Flora Gomes. Achei a síndrome de Medvedkin outra vez num campo de refugiados da Bósnia em 1993,um grupo de garotos que havia aprendido técnicas de TV pirateando transmissões por satélite e usando equipamentos antigos emprestados por ONGs. E eles não haviam copiado a linguagem dominante: eles usaram aqueles recursos para ganhar credibilidade e produzir notícias para outros refugiados. Uma experiência exemplar. Eles tinham as ferramentas e tinham a necessidade. Ambos são indispensáveis.

Observação: originalmente publicado em 7/10/2007- 17:00