sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Da Folha (6) - Bom de pensar



Fotos: Flávio Dutra

Saber e experiência

CONTARDO CALLIGARIS

Por que visitamos museus? Procuramos experiência estética ou queremos nos cultivar?

Na sua próxima visita a um museu de arte, esqueça-se das obras e considere apenas os visitantes. Um bom número, talvez a maioria, não para diante de uma tela (por exemplo) sem antes ter lido a pequena placa com nome do artista, título e data. Bom, eles querem se cultivar, saber quem pintou, quando e o quê. Mas, dessa forma, muitos acabam, sobretudo, limitando sua experiência: ao constatar que o autor lhes é desconhecido, eles mal olham para a tela e passam à obra seguinte, enquanto, se o pintor for uma celebridade, contemplam com dedicação - as más línguas dirão que eles sentem-se assim "autorizados" a parar e contemplar. Os mais divertidos são os que adotam estratégias bizarras para dar uma espiada na placa sem que o amigo que os acompanha se dê conta e logo exclamam em voz alta, como se tivessem reconhecido a obra sem auxílio algum: "Aqui está o quadro de...". E há os grupos de turistas, forçados a correr de uma "obra-prima" a outra, atropelando obras menores, que talvez fossem para eles (quem sabe, só para eles) decisivas.De fato, o saber pode aprimorar nossa experiência estética; por exemplo, é bom apreciar uma tela de El Greco tendo conhecimento do fato de que ele pintou no século 16, pois talvez, sem isso, sua incrível ousadia expressionista nos comova menos.Inversamente, se privilegiarmos demais o saber, tenderemos a nunca sair de caminhos trilhados e, pior, a forçar nossa experiência no molde do pouco que sabemos. A primeira vez que visitei o Museu do Prado, em Madri, aos 14 anos, eu só queira ver a pequena sala onde estavam os quadros de Hieronymus Bosch. Ao entrar, fui hipnotizado pelo azul estranho e intenso do céu numa paisagem de Joachim Patinir, um pintor flamengo da mesma época, que eu desconhecia. Não li a placa, "atribuí" a Bosch o quadro de Patinir e saí feliz de ter descoberto "meu Bosch preferido", que era tão diferente dos quadros de Bosch mais conhecidos e reproduzidos. Se tivesse lido a placa, provavelmente eu teria me sentido na obrigação de esquecer o céu de Patinir e destinar minha atenção só aos quadros de Bosch; em obséquio ao meu saber, que era modesto e trivial, eu teria renunciado a uma experiência cuja lembrança ainda me encanta. Recentemente, visitei a exposição "In-Finitum", no Palazzo Fortuny, em Veneza (até 15 de novembro), que reúne obras e objetos de todas as épocas ao redor de um tema, "In-finitum", que, cá entre nós, é suficientemente vago para que qualquer coisa possa ser incluída na exposição. Instalações e quadros emprestados por museus e coleções particulares são assim misturados com objetos que enfeitavam a casa de Mariano Fortuny, quando ele estava vivo. Há de tudo: de um "conceito espacial" de Lucio Fontana a um banal ovo de avestruz. A regra (inusitada e atrevida) das exposições do Palazzo Fortuny quer que os objetos não sejam identificados por placa alguma, como se a gente estivesse visitando a casa de alguém. Para quem não aguenta o tranco, está disponível uma espécie de mapa que deveria permitir identificar os objetos expostos, mas cuidado: a duras penas.Para alguns, a visita se torna assim uma caça ao tesouro (as crianças adoram). Outros rejeitam o mapa e testam sua própria capacidade de atribuir algumas das obras a seus respectivos autores. Outros ainda, fiéis ao espírito da exposição, percorrem os andares do palácio permitindo-se uma experiência estética e meditativa, sem se preocupar em saber direito quais são os objetos nos quais eles esbarram.O catálogo obedece ao mesmo princípio da exposição: começa com as reproduções das obras expostas, sem nada que as identifique. Seguem os ensaios e, só em apêndice, a lista das reproduções.Antes de deixar o palácio, li o caderno em que os visitantes são convidados a escrever suas impressões. O leque vai de "Experiência única, por uma vez pensei e senti, em vez de querer saber quem fez o quê" até a (mais frequente) "Os curadores estão bêbados? Não se entende nada no mapa. Que tal uma plaquinha de vez em quando?".Pergunta: o que aconteceria em nós, visitantes, se os museus escondessem toda informação sobre as obras expostas? Moral da história: o debate entre saber e experiência, por mais que seja um clássico do pensamento pedagógico, é sem solução. A falta de saber compromete e empobrece a experiência, mas, sem a liberdade da experiência imediata, o saber se torna chato, estupidamente repetitivo e, no fundo, frívolo.


Publicado na Folha SP, do dia 27/08/2009.

P.S. (de Campo de Visão). No MoMA, vi uma exposição parecida, em uma sala que chamam de "Artist`s choice". Uma espécie de "o-que-um-artista-gosta-e-levaria-para-um-museu", curada pelo Vik Muniz. Ele, genial, não escolheu alguém especial. Escolheu obras diversas, um monte, de um monte de gente. E não colocava o nome (chamava isso de "Rebus"). Do mesmo jeito que o Calligaris narrou, entregavam um mapa na entrada para o caso de o visitante querer identificar quem/o quê. Conferi tudinho. Que careta eu, senti agora.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Bang bang



Um dos livros mais interessantes sobre fotojornalimo, situações de conflito e fotografia se chama Clube do Bang Bang. Conta a história de quatro fotógrafos sul-africanos em Soweto no período do fim do Apartheid, no começo dos anos 90. O livro, escrito por Greg Marinovich e João Silva, conta histórias e uma visão da história daquele momento da África do Sul. Os outros dois fotógrafos do grupo (que na verdade não era um "grupo" formal e sim quatro amigos em uma mesma situação de trabalho) eram Kevin Carter e Ken Oosterbroeck. Oosterbroeck morreu durante um tiroteio, nove dias antes das primeiras eleições democráticas e não raciais, e Carter (autor da discutida foto da criança sudanesa ao lado de um abutre) suicidou-se em meados dos anos 90. Um desmistificador (ainda que delicado) obituário de Carter, publicado na revista Time, em 1994, pode ser lido aqui.

O blog do NY Times publica aqui a história deste livro e destes fotógrafos. Além disso, apresenta um video com imagens narradas pelos dois remanescentes do grupo, Marinovich e Silva.

O livro foi lançado em português alguns anos atrás, pela Companhia das Letras. É facilmente encontrável no Estante Virtual.

Está em fase de finalização (com lançamento previsto para 2010) um filme, dirigido por Steven Silver, com roteiro adaptado do livro.

P.S.: No próximo sábado (22/08, 17h) tem Pipoca e Fotografia no Projeto Contato. Vamos projetar o filme Abaixando a máquina - ética e dor no fotojornalismo carioca. Para a conversa e o chimarrão, os convidados serão Daniel Marenco (da Zero Hora), Gabriela Di Bella (do Jornal do Comércio) e o Mateus Bruxel (do Correio do Povo).

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Exposição no MARGS


Fotos: Flávio Dutra

Cobrindo uma pauta para o Jornal da UFRGS, fui fotografar a exposição comemorativa ao ano França no Brasil, no Museu de Artes do RGS. Algumas coisas me atiçaram a curiosidade:

1. achei que veria mais gente por lá. Fui três vezes ao MARGS e nunca vi muita, muita gente. Certamente está bem visitado, mas tinha impressão que veria ainda mais público;

2. uma coisa engraçada talvez, querida até, mas também uma indicação da nossa "falta de hábito" com as coisas da "grande cultura": as pessoas fazem fila para ver os quadros. Vão seguindo a linha amarela que demarca o espaço possível de aproximação e a usam como uma guia. Quando alguém para para olhar um pouco mais detidamente, os que vêm atrás param também;

3. o recorte foi amplo, dentro da idéia do realismo e da idéia de "França". Van Gogh certamente não é francês e a razão para estar na mostra é que morou e produziu na França. Fiquei pensando se é só uma boa justificativa ou se realmente faz sentido. Ou se não é só uma (ótima!) maneira de termos um Van Gogh aqui (isso vai longe de ser uma reclamação, apenas uma rápida tentativa de pensar "o recorte" da curadoria).

4. por fim, duas curiosidades: estranhei que me permitiram usar flash, se precisasse. E um quadro, do Giacometti, não pode ser fotografado pois a exposição não tem direito de uso de imagem.

Republico abaixo uma coluna do Marcelo Coelho, escrita por conta das fotos em museu - principalmente no Louvre, que foram tema de uma exposição (e trabalho de uma vida) do Alecio de Andrade. Esta exposição esteve em cartaz no Instituto Moreira Salles, em Porto Alegre, até o último dia 27/07.

Aprendendo a ver

MARCELO COELHO

Somos um bocado cegos diante do mundo, mas os fotógrafos nos ensinam a enxergarA maior parte das pessoas vai a um museu de arte para ver, claro, quadros e esculturas. Digo "a maior parte" porque há também os que não têm grande interesse no assunto e simplesmente acompanham, puxados pelo braço, quem os levou até lá. Digo "ver" os quadros e esculturas, mas isso também é exagero. A gente passa por eles, toma conhecimento de que existem, mas nem sempre é fácil "ver" aquilo que está num museu. Às vezes o embolo é tão grande, que em pouco tempo nosso único desejo é sair dali e "ticar" aquele item da nossa congestionada agenda de turista. O fotógrafo brasileiro Alécio de Andrade (1938-2003) pertencia a uma categoria mais rara de visitantes. Durante 39 anos, frequentou o Museu do Louvre. Não para ver as obras, mas para fotografar quem as via.É uma fauna e tanto. Uma das poucas vantagens desses lugares de grande aglomeração turística é poder apreciar a variedade de rostos, de tipos, de atitudes e de idades reunidas em torno de um grande quadro - que surge então não apenas pelo que tem de bonito em si, mas pelo que traz de síntese de toda a humanidade. "O Louvre e Seus Visitantes", em cartaz até 21/6 no Instituto Moreira Salles de São Paulo, reúne várias das fotos tiradas por Alécio Andrade nessa espécie de pesquisa antropológica, muitas vezes irônica, e de vez em quando tomada de lirismo. A ironia aparece, por exemplo, quando três freiras são retratadas de costas, dentro de seus volumosos hábitos cinzentos, absortas na contemplação das Três Graças da mitologia grega, nuíssimas num quadro neoclássico.Cansaço, tédio, vivacidade, sono, discórdia e companhia conjugais se sucedem nas fotos de Alécio Andrade, como se, numa pose inconsciente, todo turista tivesse sido pintado, também, pelos mestres que se escondem do outro lado da parede. O mais bonito de tudo, eu acho, são os cabelos. O glorioso e desgrenhado fluxo de ouro que emoldura uma turista, o comportado corte preto de outra, a surpresa de uma maria-chiquinha fulgurante, o empasto uniforme de uma menina triste como um anjo, tudo lembra e revive as pinceladas, as ventanias, os pudores dos Botticellis e Watteaus, quando fixaram na tela o rosto de tantas mulheres, hoje transformadas em pó. Fotos de pessoas de costas: este é um dos temas do livro brilhante do escritor inglês Geoff Dyer, "O Instante Contínuo", lançado recentemente pela Companhia das Letras.Trata-se, como diz o subtítulo, de "uma história particular da fotografia". Em vez de seguir rigorosamente a cronologia, o autor escolhe temas que possam nos guiar através de um labirinto de imagens, de percepções, de personalidades e de momentos da história do século 20.

Fotos de cegos
Fotos de cegos tocando sanfona. Fotos de multidões usando chapéu. Fotos de escadas. De cercas brancas. De janelas. Comparando, com essas chaves sucessivas, as obras de Paul Strand, de André Kertész, de Edward Weston ou de Walker Evans, o livro de Geoff Dyer é uma maravilha de astúcia, de humor e sensibilidade. Ele evita as armadilhas do formalismo técnico, do sociologismo e do psicologismo, sabendo misturar todos os enfoques sem nunca perder a mão.É difícil ver um crítico capaz de combinar tanta imaginação e senso de realidade num único parágrafo, numa descrição breve de uma obra de arte. A história da grande depressão econômica dos anos 1930, escreve Dyer, "pode ser contada pelas fotografias dos chapéus masculinos".Todos os homens pareciam iguais nas fotos daquela época, porque os chapéus tendiam a uniformizá-los. Antes da crise, chapéus eram sinais de prosperidade e de igualdade. As fotos de 1930 passam a revelar outras coisas: concentração de força política numa manifestação de operários; penúria extrema a pesar sobre a cabeça de um lavrador; anonimato, desistência; último instrumento de trabalho de um mendigo, à espera de esmolas numa esquina.O mendigo, numa foto de John Vachon tirada em 1937, era cego. O fascínio dos fotógrafos pelos cegos é mais do que compreensível. Os turistas do Louvre, retratados por Alécio Andrade, não são muito diferentes desses cegos; de resto, na maior parte do tempo somos todos um bocado cegos diante do mundo. Mas os fotógrafos servem exatamente para nos ensinar a ver; Geoff Dyer é um daqueles críticos que fazem isso também.

coelhofsp@uol.com.br

Fonte: Folha de SP, de 27/05/2009.






quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Primeiro contato


Domingo passado, procurando fotos que sabia que existiam e não sabia onde andavam, me deparei com este contato. Pra quem não sabe (não é crime, isso é mesmo coisa "antiga"!) as folhas de contato eram a primeira relação "positiva" do fotógrafo com suas imagens (meio ruim dizer isso, mas, posto assim, o filme era a primeira relação "negativa" com as imagens...). Importante pra mim, este contato é o resultado do primeiro filme que fotografei, no primeiro curso de fotografia que fiz, com a primeira câmera que tive. Uma câmera Praktica MTL3, de fabricação da Alemanha Oriental, com lente de rosca. (Pensei em explicar "Alemanha Oriental" ou "lente de rosca", mas achei que ia começar a me deprimir se seguisse nessa linha...). Depois, tive uma Nikon FM, uma F100 (foi o fim do meu mundo analógico), uma Nikon D200 e agora uma D700. Não foram muitas, pensando assim. Mas me ensinaram muito (sobre mim e sobre o mundo).
Mas queria postar mesmo era esse texto do Veríssimo que saiu na ZH desta semana. Sinto falta do tempo no laboratório fazendo contatos. Do topete também.
Houve uma época - Luis Fernando Veríssimo
Um dia falaremos do tempo em que se revelavam fotos e as crianças não nos entenderão. Perguntarão “Como, ‘revelava’?”, e contaremos que levávamos os rolos de filme para serem revelados, e só então sabíamos como as fotos tinham “saído”, se nenhuma cabeça tinha sido cortada e nenhuma paisagem reduzida a um borrão indecifrável. E aumentará a perplexidade das crianças. “Rolo?”. “Filme?”. Reagirão ao fato de que houve uma época em que a distância entre o “clic” e a foto pronta podia ser de semanas como hoje reagimos à lembrança, por exemplo, de que já existiu uma coisa chamada Gumex. Quem se lembra do que era Gumex que levante o dedo, se ainda tiver forças. Usei muito Gumex. Era uma espécie de gelatina cor-de-rosa que se aplicava ao cabelo para fixar o penteado. Vendia-se em potes ou em pó, para sua mãe misturar com água. O cabelo ficava duro. O Gumex não apenas mantinha seu topete armado em qualquer ventania, como servia de proteção contra eventuais objetos caídos do céu. Um problema: depois de passar o Gumex, você tinha poucos segundos para ajeitar o topete de modo a assegurar o máximo efeito, pois o endurecimento era rápido. Não havia tempo para muita criatividade.
Ninguém precisa mais esperar para ver suas fotos reveladas e as velhas câmeras com rolos de filme seguem o caminho do Gumex para o esquecimento, mas as novas câmeras não tornaram o ato de fotografar muito mais fácil, pelo menos para os recém-chegados ao mundo digital. Como bem sabe quem já teve que esperar, fazendo pose, que um fotógrafo descobrisse como funcionava a câmera digital de outro.
– É só apertar o botão.
– Qual?
– O da direita.
– Minha direita ou a sua?
– A sua, a sua.
– Não aconteceu nada.
– Tem que ficar apertando.
– Pronto. Deu. Ou não deu?
– Eu não vi o “flash”.
– Tinha que ter “flash”?
– Tinha. Tenta de novo.Clic.– Oba. Agora foi.
– Deixa ver como ficou...
– Acho que ficou boa.
– Você cortou a minha cabeça!
É verdade que as novidades nem sempre fazem esquecer o que havia antes. Como prova a volta do disco de vinil, quando parecia que o CD era definitivo.Além de, dizem, o vinil gravar coisas que o CD não grava, deve haver um pouco de nostalgia nessa volta ao passado. Eu usaria de novo o Gumex, se ainda existisse. Mas cadê o topete?
* Fonte: Jornal Zero Hora, publicado em 3/08/2009.
P.S. Meu primeiro curso de fotografia foi 1994, com o grande Marcelo Amaral, no SENAC da Cel. Genuíno, no tempo em que se fazia fila de madrugada pra conseguir vaga por lá. As fotos foram feitas (mais reminiscências...) quando uma turma de fotografia ainda conseguia ir à Redenção, tranquilamente, fotografar.