quinta-feira, 23 de julho de 2009

Para Saul Leiter*




Comecei a fotografar porque gostava de desenhar com o olhar. Gostava de relacionar elementos da cidade de maneira que parecessem outras coisas, não as que eu efetivamente (!) via. Por exemplo, gostava de caminhar olhando para cima, para ver como as linhas do teto dos prédios se juntavam e que formas apareciam. Até aí, fotografava sem câmara. Quero dizer, muito tempo depois me dei conta que “fotografava”.
De verdade, comecei a fotografar porque precisava me concentrar. Daí a perceber que não podia haver concentração maior do que quando estava olhando pelo visor da câmera foi um pulo. O mundo enquadrado era muito mais fácil que o mundo amplo, aberto, binocular. Além de monocular, preferia as teleobjetivas. Aproximavam tudo e, ao mesmo tempo, mantinham tudo a distância. Paradoxal. E mais paradoxal é que eu não gostava. Achava que fotografia “de verdade” exigia relacionamento, proximidade, troca. E não me satisfazia. Nunca me satisfazia com o que fotografava. Achava “relacionamento, proximidade, troca” um grande mistério. Uma vez, Beatriz me disse que minhas fotografias eram como um olhar “através”. Não gostei. Não queria olhar “através”. Queria estar dentro, olhar “de dentro”, próximo, e não “espiar”. Assim era fotografia, para mim.
Comecei a pensar diferente em uma viagem, quando vi uma exposição de um fotógrafo de quem nunca havia ouvido falar. Saul Leiter. Fotógrafo norte-americano dos anos 50, que fotografava nas ruas e em cor, fato raro na época. Como eu, e bem antes, Leiter fotografava “através”. Foi quando me dei conta que estava querendo ser outra coisa, outra pessoa, que não conseguia reconhecer em mim, uma forma, um jeito. Que estava fazendo força para olhar para o lado, para o que eu não era, em vez de reconhecer como eu olhava. Simples e complexo: olhar como eu olho. Demorei muito para me dar conta de como olho. E mais difícil que isso é, depois de descobrir, não “regrar” a maneira de olhar e, para sempre, ver tudo da mesma maneira. Para mim, fotógrafo, seria, quase, morrer.
Com respeito à técnica, gosto de me exigir quando fotografo. Gosto de enquadrar e dali, do enquadramento da hora da obtenção, ter a fotografia. Acho que é uma mania de quem começou analogicamente. E acho que digo isso também com um certo “orgulho”, antigo provavelmente. Um orgulho de dizer que as fotos destas páginas são assim, sem cortes, sem manipulações, só com os tratamentos que toda fotografia digital exige. Fotografia nunca foi a realidade. Mas, agora, além disso, precisa ser afirmada para, ao menos, ter um mínimo de credibilidade possível. Tempos bicudos esses...
* Texto e fotos publicados na Revista Magis (http://www.unisinos.br/magis/), da Unisinos, em julho/2009, na coluna "Sob a Luz (11)". (Publicado na revista com pequenas alterações, suficientes para que tudo pareça muito diferente. Ai, edição...)





quinta-feira, 9 de julho de 2009

Chris Marker (2) - uma entrevista


Foto: Chris Marker (Paris, maio 1968)


Chris Marker, em uma visita às filmagens de O Sacrifício, de Andrei Tarkovsky (Foto: Lars-Olof)


A entrevista abaixo foi publicada no jornal francês Liberation e traduzida por Marilia Martins, no blog Diário de NY (http://oglobo.globo.com/blogs/ny/post.asp?cod_Post=76215)


Uma entrevista rara de Chris Marker

São raríssimas as entrevistas de Chris Marker. Aos 81 anos, vivendo em Paris, esse cineasta francês nascido em Neuilly-sur-Seine continua a se aventurar por novos meios, misturando fotografia, cinema, vídeo, instalação, CD-Rom. A obra de Marker é das mais extensas e variadas. Ele fez parcerias notáveis com Alain Resnais, em “Les statues meurent aussi”, de 1953, e em “Nuit et brouillard”, de 1955. Tornou-se internacionalmente conhecido com “La Jetée”, de 1962, um filme de ficção científica feito como uma série de fotogramas imóveis e um texto-ensaio sobre as relações entre tempo e imagem. Passou pelo cinema militante dos anos 60 e 70 com documentários políticos, como “La sixième face du Pentagone” (de 1968, sobre as manifestações contra a guerra do Vietnem) e os filmes da série “On vous parle” (inclusive com dois filmes feitos no Brasil, tematizando a ditadura militar, a tortura e a resistência armada, “On vous parle du Brésil: torture (1969) e “On vous parle du Brésil: Carlos Marighella”, de 1970).
Nos anos 80, ele dirigiu um dos marcos do documentário experimental, “Sans soleil” (de 1983, já lançado no Brasil em DVD). Nos anos 90, Marker se dedicou aos filmes em forma de poema, como na série de curtas “Bestiaire” _ “Chat ecoutant la musique” (que está no youtube); “An owl is an owl is an owl” e “Zoo piece” _, aos filmes em forma de ensaios, como “Le tombeau d’Alexander” (homenagem póstuma ao cineasta russo Alexander Medvedkin, feito em 1992 e já disponível em DVD), “Une journée d’Andrei Arsenevich” (uma homenagem a outro cineasta russo, Andrei Tarkovsky, morto em 1986). Em 1998, Marker produziu um CD-Rom interativo chamado “Immemory”, hoje difícil de ser encontrado, produzido pelo Centre Georges Pompidou. Nos anos 00, ele filmou “Les Chat perchées” (The case of the grinning cat”, em inglês, um documentário sobre um grafiteiro cuja marca registrada era o desenho de um gato, que apareceu em murais da cidade de Orleans, depois em Paris e em várias outras cidades européias. E criou uma vídeo instalação para o MOMA, em 2005, intitulada “Owls at noon prelude: the hollow man”, inspirado num poema de T. S. Eliot.

ENTREVISTA/CHRIS MARKER

LIBERATION: Cinema, fotonovela, CD-Rom, instalação de vídeo... Existe algum meio que você não experimentou?
MARKER: Sim, gouache.
LIBERATION: Por que você concordou que apenas alguns de seus filmes fossem lançados em DVD e como fez a escolha?
MARKER: Vinte anos separam “La Jetée” de “Sans soleil”. E outros vinte anos separam “Sans Soleil” de hoje. Nestas circunstâncias, se eu fosse falar em nome da pessoa que fez esses filmes, não seria uma entrevista, mas um debate. Eunão acho que escolhi ou aceitei: alguém falou em fazer e foi feito. Eu já sabia que há certa correspondência entre esses dois filmes, “La Jetée” e “Sans soleil” e não precisava explicar isto. Até que eu encontrei uma nota anônima sobre meus filmes, publicada num programa em Tóquio, que dizia: “Breve a viagem terá um fim. E então nós vamos saber se a justaposição de imagens faz algum sentido. Vamos entender que rezamos com um filme como quem está numa peregrinação, a cada vez estamos novamente diante da morte: no cemitério de gatos, diante de uma girafa morta, ao lado de kamikazes no momento do salto, em frente a guerrilheiros mortos em combate. Em “La Jetée”, o experimento com o futuro termina com a morte. Ao tratar do mesmo tema, vinte anos depois, Marker supera a morte com a oração”. Quando li isso, escrito por alguém que eu não conheço, que não sabia como fiz aqueles filmes, senti uma emoção e percebi que “alguma coisa” havia, afinal, acontecido.
LIBERATION: No CD-Rom “Immemory”, lançado em 1999, você disse que havia encontrado um meio ideal para o seu trabalho. O que você acha do DVD?
MARKER: No CD-Rom, o importante não é a tecnologia e sim a arquitetura, em forma de árvore, na qual de um mesmo caule saem vários galhos, várias possibilidades diferentes de jogo. Vamos agora fazer DVD-Roms. A tecnologia do DVD é soberba, mas nem sempre é cinema. Godard definiu de uma vez por todas: no cinema, você levanta os olhos para a tela; na televisão, você baixa os olhos para o monitor. E ainda há a questão do projetor: as duas horas de uma sessão de cinema são passadas no escuro. É a porção noturna que fica junto a nós, que fixa a memória de um filme de um modo bem diferente de um filme filme num monitor de TV ou de computador. E vamos ser honestos: é bem diferente. Assite outro dia “Um americano em Paris” na tela do meu iBook e quase redescobri a luz que eu havia sentido em Londres, em 1952, quando estava filmando com Alain Resnais e Ghislain Cloquet “Les statues meurent aussi”... Nós começávamos a filmar todos os dias, depois de ver a sessão matinal, das 10h, de “Um americano em Paris” num cinema da Leiscester Square. Eu achei que havia perdido aquela luz para sempre, taé que revi o filme no computador.
LIBERATION: A democratização dos meios de filmagem (DV, edição digital, distribuição via internet) seduz um cineasta socialmente engajado como você?
MARKER: Esta é uma boa oportunidade para eu me livrar deste rótulo. Muita gente acha que “engajado” significa “político”, e a política, a arte do compromisso (que é o que deveria ser porque se não há compromisso, existe apenas a força bruta, da qual temos tantos exemplos atualmente), me entedia profundamente. O que me interessa é a história. A política me interessa apenas na medida que carrega a marca da história no presente. Com uma curiosidade obsessiva (que eu identifico com alguns dos personagens de Kipling, com o Elephant-boy de “Just-so stories”, por sua curiosidade insaciável), eu continuo a perguntar: como as pessoas conseguem viver neste mundo? E vem daí a minha mania, de ver como as coisas são neste lugar ou naquele. Por muito tempo, aqueles que eram melhor posicionados para “ver o que estava acontecendo”, não tinham acesso aos meios para dar formas às suas percepções, e a percepção sem forma é enfadonha. Agora, de súbito, esses meios estão acessíveis. Para gente como eu, é um sonho que se tornou realidade. Escrevi sobre isto num folheto que saiu no DVD do meu filme. Uma cautela necessária: a democratização dos meios ainda carrega constrangimentos financeiros e técnicos, e não nos desobriga da necessidade do trabalho.Comprar uma câmera de DV não confere a alguém, magicamente, o talento para fazer filmes que ele não tenha, nem fazer desaparecer a preguiça daqueles que não querem se interrogar para saber se esse talento existe ou não em si mesmos. Você pode miniaturizar o quanto quiser o equipamento, mas fazer um filme existe muito trabalho e uma boa razão para fazer isto. Esta é a história de cineastas, como os que se juntaram no grupo Medvedkin, jovens operários que, no período pós-68, tentaram fazer filmes sobre suas vidas, e que tentaram alcançar algum recurso técnico, com os meios que dispunham na época.Como eles reclamavam: “A gente chega em casa depois do trabalho e você ainda nos pede para trabalhar mais!” Mas eles perseveraram e você deve reconhecer que algo aconteceu ali, porque 30 anos depois nós os vemos apresentar seus filmes no Festival de Belfort,diante de uma platéia muito atenta. Os meios disponíveis na época eram o filme 16mm mudo, o que representava três minutos de rolo de filme, um laboratório, uma mesa de edição, alguma forma de adicionar o som na edição, tudo o que você tem hoje dentro de uma pequena caixa do tamanho da palma da mão. Eles deram uma lição de modéstia para os jovens de hoje, que disperdiçam recursos, assim como os jovens daquela época aprenderam sua lição ao se juntarem num grupo sob inspiração de Alexander Ivanovitch Medvedkin e seu cinema-trem. Medvedkin foi o cineasta russo que, com os meios do seu tempo (filme 35mm, laboratório, mesa de edição, tudo instalado num trem) saiu filmando nas locações mais diversas, levando os filmes aos lugares mais distantes. Medvedkin inventou em 1936 a televisão: filmava durante o dia, revelava e editava de noite, e passava no dia seguinte para as pessoas que ele havia filmado (e que muitas vezes participavam da edição). Acho que isto é fabuloso e ele não foi sequer mencionado na "História do cinema", escrita por George Sadoul, livro considerado naquela época a “bíblia do cinema soviético”. Os trabalhadores que eu filmei na Rodésia em 1967 eram bem parecidos aos kossovares que eu filmei em 2000: nunca tinham visto televisão. Para minha surpresa, certa vez estava explicando a edição de "Encouraçado Potemkim" para um grupo de aspirantes de cineastas na Guiné-Bissau, usando velhos rolos de filmagem. Agora, aqueles cineastas estão tendo filmes selecionados para o Festival de Veneza. Fiquei impressionado com um musical de Flora Gomes. Achei a síndrome de Medvedkin outra vez num campo de refugiados da Bósnia em 1993,um grupo de garotos que havia aprendido técnicas de TV pirateando transmissões por satélite e usando equipamentos antigos emprestados por ONGs. E eles não haviam copiado a linguagem dominante: eles usaram aqueles recursos para ganhar credibilidade e produzir notícias para outros refugiados. Uma experiência exemplar. Eles tinham as ferramentas e tinham a necessidade. Ambos são indispensáveis.

Observação: originalmente publicado em 7/10/2007- 17:00