sábado, 25 de dezembro de 2010

Patti Smith

Patti Smith declara seu amor por Robert Mapplethorpe em livro de memórias
THALES DE MENEZES
DE SÃO PAULO



*Originalmente publicado na Folha de SP, do dia 22/12/2010

Quando "Só Garotos" venceu o National Book Awards há dois meses, a primeira coisa que a autora do livro pensou foi: "Que ótimo! Assim, muito mais gente vai conhecer o verdadeiro Robert!".

Cantora de rock, poeta, ícone cultural desde a década de 1970, a norte-americana Patti Smith levou 20 anos para terminar esse livro de memórias. Cumpriu assim uma promessa feita ao fotógrafo Robert Mapplethorpe feita poucos dias antes de sua morte, em 1989, em decorrência de Aids.
O casal se encontrou por acaso em Nova York, no verão de 1967, dois garotos pobres, muito pobres, mas com muita vontade de fazer arte. Ela escrevendo e desenhando. Ele pintando. Viraram nomes fundamentais para entender a arte norte-americana no século passado.
Em entrevista à Folha, Patti recordou seu namoro, e depois amizade, com o polêmico Mapplethorpe, fotógrafo de muitas fases mas habitualmente associado a suas séries de imagens de sadomasoquismo.
Ela lamenta não ter a posse de mais trabalhos da dupla. "Muita coisa está em museus e galerias. Eu tenho alguma coisa dessa época, não são muitos. Trabalhos foram perdidos, roubados, outros destruídos. Mas guardo muitos cadernos de anotações, poemas..."
Escrevendo sempre à mão, preencheu milhares de páginas para chegar ao livro. Hoje, acha graça de ter perdido um dos cadernos durante a preparação do material.
"Tive de reescrever o que estava ali. Semanas depois, achei o caderno perdido e vi que os dois estavam praticamente iguais. Foi incrível. Naquele momento eu ganhei a confiança que me faltava, vi que eu realmente tinha a história na minha cabeça.
Disciplinada, escreve todos os dias, mesmo agora, quando prepara seu novo álbum, o décimo de material inédito numa discografia iniciada em 1975, com o hoje clássico roqueiro "Horses".
"Escrevo sempre, desde que me lembro. Quando terminar de gravar o disco, é natural que eu trabalhe mais nas minhas anotações recentes. Preciso reler muita coisa para saber se ali tem algo que eu deva me esforçar para melhorar e talvez publicar. "
Ela diz não ter prazos nem para o disco nem para outros livros. "Tenho meu ritmo e preciso respeitá-lo."

Folha - "Só Garotos" conta uma história que acompanha você há muito tempo. Como foi o processo para escrever?
Patti Smith - Eu trabalhei no livro por alguns anos. Escrevia em meus cadernos, fazia anotações, e, às vezes, relia coisas antigas, cartas que Robert escreveu. E tenho muitos diários do tempo em que era mais nova, muitos mesmo, além de artigos que escrevi, diários. E muitas vezes eu apenas... pensava.
Sabe, muito de escrever é na verdade pensar, e ficava muito tempo pensando, até ter trechos completos de nossa história. Foi como montar um filme, eu queria ver o que estava escrevendo.
O processo tomou muito tempo porque muitas vezes me deixava triste, é difícil escrever sobre nós mesmos.
Como selecionou as fotos e desenhos incluídos no livro?
Eu queria que tudo ficasse bem intimista. Vi muitas fotografias, mas, no fim, deixei as que mostravam apenas Robert e eu. Tenho tantas com William S. Burroughs, muitas fotos com pessoas citadas no livro, mas, buscando essa aura de intimidade, tirei fora tudo que não mostrasse eu e Robert.
Meu trabalho, o trabalho dele, nós quando crianças, os dois juntos. Tentei escolher coisas que a maioria das pessoas não tinha visto.
Você e Mapplethorpe tinham um forte compromisso com a arte, desde muitos jovens, ele desenhando e você escrevendo. Mas conseguiram sucesso depois de mudanças, ele passou a fotografar e você virou cantora. Como você analisa hoje esses caminhos?
Eu ainda me surpreendo. É muito misterioso. Nunca tinha me visto como uma cantora de rock, ele nunca quis ser um fotógrafo. Um encorajou o outro em tudo, mas foi simplesmente o destino.
Ainda hoje fico espantada de viajar pelo mundo e cantar, nunca sonhei com isso, não desejava esse caminho quando era jovem. Acho que tanto eu como Robert temos muitas maneiras de expressar nossa arte.
Tenho certeza de que Robert, se estivesse vivo, teria deixado a fotografia para fazer outra coisa, porque me dizia que já tinha feito tudo o que queria na fotografia e estava pronto para mudar.
Quando escreveu o livro, sentiu que precisava mostrar outra visão do trabalho dele?
Eu quis mostrar às pessoas como ele era quando jovem, como ser humano e como artista. Na verdade, são minhas memórias sobre nós, e a maioria das pessoas não sabe nada sobre ele. Muito do que se pode ler sobre Robert foi escrito por pessoas que não chegaram a conhecê-lo, e é horrível tentar dizer coisas sobre a vida de um artista usando apenas sua obra.
Quem lê uma biografia de Robert escrita por alguém que não o conhecia não vai perceber sua magia, seu humor e sua doçura. O que pretendi, conhecendo Robert desde que tinha 20 anos, foi fazer um retrato real.
Como você define o trabalho de Mapplethorpe?
Por ser um grande conhecedor de arte, ele é muito clássico. Quando trabalhava com temas difíceis, como o lado marginal da vida, sadomasoquismo e outros aspectos da sexualidade, não estava interessado apenas em chocar as pessoas.
Ele fez uma coisa nova, mas de uma forma clássica. Eu considero Robert um artista, não só um fotógrafo. Um artista que tira fotos. Fomos privados de ver sua obra completa, ele morreu aos 42.
Você consegue imaginar sua carreira sem os anos em que viveu com ele, sem as coisas que passaram juntos?
Não. Eu não seria o que sou sem ele. Porque desde que o conheci, muito jovem, ele foi ajudante e meu confidente. Eu ainda analiso as coisas hoje pelo que aprendi com ele, enxergo obras de arte com os olhos dele. Foi muito, muito importante para mim. Eu me encontrei como artista bem nova, mas, quando me perdi, ele ficou do meu lado e me ajudou.
O que Mapplethorpe achava de sua música?
Ele gostava muito de dançar e acho que sempre esperava que eu escrevesse canções boas para dançar. Queria muito que eu chegasse às paradas, que lançasse canções de sucesso, de que as pessoas gostassem. Minhas músicas, pelo menos na América, muitas vezes não foram bem entendidas, mas ele tinha orgulho de mim.
Que tipo de música ele ouvia?
Música romântica, mas adorava mesmo o som da Motown, gostava também de Tim Buckley. Uma música que Robert adorava era "Sympathy for the Devil", dos Rolling Stones. Bom, estávamos juntos o tempo todo, então gostávamos das mesmas músicas, ouvíamos muito Janis Joplin. E a gente adorava dançar.
Quem lê o livro comenta seus encontros com celebridades como Jimi Hendrix, Janis Joplin, Allen Ginsberg...
Sim, isso fascina as pessoas, esse é o retorno que eu tenho dos leitores, mas devo deixar claras algumas diferenças entre aquela época e o culto da celebridade hoje.
Alguns desses nomes ainda não eram tão famosos, começavam a fazer sucesso. E é preciso lembrar que muitos moravam no mesmo hotel em que eu vivia.
Existia uma cena cultural, em que essas pessoas se encontravam em bares e lugares de shows. O importante é que era uma cena gregária, que reunia as pessoas. A cena de celebridades de hoje quer separar as pessoas, destacar quem é celebridade.
Hendrix e Janis eram muito acessíveis, queriam saber o que os outros faziam. Claro que eram estrelas de rock, eram grandes, mas não eram diferentes de nós, digo, de mim e Robert.
Janis vivia no mesmo hotel, a diferença é que o apartamento dela era imenso, e o meu, bem pequeno.
"Só Garotos" é, muitas vezes, um livro que fala de sobrevivência. Você e Mapplethorpe sem dinheiro para comer, cruzando a cidade em busca de um lugar para dormir, só com a roupa do corpo. Você acha que isso foi um passo necessário em sua carreira?
Para mim foi, mas sei que não tenho o histórico habitual dos artistas. Vim de uma família pobre, para mim não era algo tão diferente não ter dinheiro ou comida.
Estudei muito sobre artistas e compreendi, de um modo romântico, é verdade, que o artista tem de se sacrificar.
Não é fácil achar beleza em não ter dinheiro, comida ou aquecimento no inverno, mas isso me ajudou. Apesar de tudo, eu era feliz e livre. Não ter nada pode dar a você uma estranha e boa sensação de liberdade.
Nova York não é mais tão receptiva aos jovens?
A diversidade a torna fascinante, mas, comparada ao lugar que conheci nos anos 1960, se tornou muito cara.
Isso torna mais difícil que os jovens consigam se desenvolver, essa dificuldade tende a empurrá-los para outros lugares. Naqueles dias a cidade era muito mais receptivas a artistas que não tinham nada além de seus sonhos.