terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Gay Talese, negros e a edição de fotografia em jornalismo

Ainda que a abolição da escravatura nos EUA tenha ocorrido cedo no século XIX, a segregação, marcadamente no Sul ainda que forte em todo o país, permaneceu ao longo do século XX. Aliás, até bem tarde no século XX. Nos anos 60, no que ficou conhecido como movimento pelos direitos civis e que teve como figura proeminente o pastor batista Martin Luther King, uma série de atos, manifestações e ações colocaram a discriminação contra os negros em questão, levantando bandeiras como o fim da segregação (explícita ou velada). De direitos ‘maiores’, como o voto, à possibilidade de sentar em qualquer lugar em um ônibus, em um bar ou, mesmo, beber água em bebedouros públicos.
Um dos atos-ícones deste movimento foi o acontecido em Selma, no Estado do Alabama, Sul dos Estados Unidos. Lugar marcado pela defesa da escravidão na Guerra de Secessão, Selma era conhecida como cidade em que o ódio racial se manifestava de maneira clara. Os fatos ocorridos em Selma estão descritos no livro Vida de Escritor, de Gay Talese (Companhia das Letras, 2009). O autor esteve na cidade cobrindo, em 1965, uma caminhada com cerca de 400 pessoas que pretendia percorrer os 80 quilômetros entre a cidade e a capital do Alabama, Montgomery. A manifestação era uma forma de fazer propaganda para o alistamento de negros pelo direito ao voto. A passeata foi brutalmente interrompida pelos policiais locais e o fato foi amplamente documentado pela televisão, que então dava seus primeiros passos no jornalismo. As imagens correram os EUA, tornando Selma uma das referências na luta pelos direitos civis. Dois meses depois, uma nova caminhada foi organizada, dela participando cerca de 25 mil pessoas. O vídeo abaixo é um pequeno documentário sobre os eventos de Selma que ficaram conhecidos como “Domingo Sangrento”.



Em 1990, para cobrir a comemoração dos 25 anos das manifestações em Selma, Gay Talese voltou ao Alabama, a serviço do New York Times. O texto a seguir é um dos capítulos de Vida de Escritor, e fala de como, apesar do Times ter publicado seu texto na íntegra, Talese ficou frustrado pela edição das fotografias. Assunto, não incomum em fotojornalismo.

de Gay Talese

Especial para The New York Times


SELMA, Alabama, 6 de março – Há 25 anos, depois de tomar emprestado um Cadillac rabo de peixe à agência fúnebre de sua família, nesta cidade outrora agrícola no centro-sul do Alabama, um jovem chamado Randall Miller reuniu-se a centenas de outros negros para atuar voluntariamente como motorista de ambulância na marcha pelos direitos civis que começaria em breve e se dirigiria à capital do estado, Montgomery [...]


Mas agora – um quarto de século depois do conflito na rodovia, que foi lembrado no último final de semana com a volta de veteranos da marcha – Selma demonstrou bastante progresso no que se refere à harmonia racial. E não apenas harmonia inter-racial, mas também, às vezes, amor inter-racial. Aqui, no último final de semana, aquele ex-motorista de ambulância, Randall Miller, atualmente com 51 anos, casou-se com uma branca de 38 anos, Betty Ramsey. Eles se casaram em presença de vinte amigos brancos e negros, na casa de Miller, num bairro integrado, ouvindo os vivas de milhares de pessoas que compareceram à cerimônia. [...]

Esses eram os parágrafos de abertura da matéria que eu tinha datilografado em meu quarto de hotel em Selma e passado por fax ao editor nacional em Nova York, esperando que saísse no Times da manhã seguinte. Eu não sabia, até a tarde desse outro dia, quando comprei um exemplar do Times no aeroporto de Atlanta antes de embarcar de volta, que os editores tinham publicado exatamente e na íntegra o que eu tinha escrito, imprimindo os oito primeiros parágrafos na metade inferior da primeira página, sob um título que ocupava três colunas: SELMA 1990: VELHAS CARAS E UM NOVO ESPÍRITO.

O resto de meu artigo de 2500 palavras, que descrevia a cerimônia do casamento e a recepção, assim como os eventos do 25º. Aniversário que tiveram lugar em toda a cidade, ocupou uma página inteira no interior do jornal. Fiquei contente com o espaço concedido a minha matéria, mas desapontado porque os editores não tinham publicado nenhuma foto do casamento. O Times tinha mandado uma de suas fotógrafas de Nova York para trabalhar comigo. Na noite anterior ao casamento, quando eu jantava com Randall Miller e Betty no Tally Ho, agradecendo por terem me incluído na lista de convidados, perguntei se podia levar comigo a fotógrafa do Times, Michele Agins. Eu a conhecera uma hora antes, no saguão do Holiday Inn; ela estava preenchendo sua ficha no balcão da recepção e eu estava saindo para o restaurante. Era uma bela jovem negra que já tinha trabalhado como fotógrafa da prefeitura de Chicago para o primeiro prefeito negro da cidade, Harold Washington. Eu não sei se isso me impressionou mais do que a Randall Miller, mas depois que eu mencionei esse fato, no jantar, ele disse que concordava que Michelle fosse ao casamento com sua câmera.

Na noite seguinte, parecia que ela estava se divertindo ao andar pela sala, à vontade e procurando não chamar a atenção, fotografando os convidados e as duas pessoas que eram o centro das atenções – Randall Miller, vestido de terno escuro com uma flor na lapela, e Betty Ramsey, que usava um conjunto de cetim branco desenhado por ela mesma e segurava um buquê de rosas e cravos. Depois que os noivos trocaram os votos de pé diante da lareira, o reverendo Charles A. Lett ergueu os braços e proclamou que a união deles “era um ato de vontade divina”. Enquanto Michelle registrava incansavelmente a cerimônia e a recepção que se seguiu com sua câmera, me alegrava pensar que suas fotos pareceriam ao Times provas convincentes daquilo que eu pretendia escrever. Era minha intenção dar a entender que mesmo naquela cidade, que devia sua identidade ao ódio racial, sem dúvida havia um espaço no qual moradores brancos e negros podiam encontrar uma causa comum, e esse espaço e essa causa, naquela noite específica, tinham convergido para a sala onde os recém casados eram brindados com champanhe por um grupo inter-racial de convidados.

Por que o Times não tinha dado uma foto do casamento? Na parte interna do jornal, onde meu artigo mencionava a passeata do jubileu de prata e citava alguns de seus participantes e testemunhas mais importantes, os editores tinham posto uma foto feita por Michelle de John Lewis e Hosea Williams, dois veteranos dos direitos civis, caminhando nostalgicamente pela ponte. Também publicaram a foto do prefeito Smitherman, de sessenta anos, sentado à sua mesa, com uma fileira de bandeiras penduradas atrás dele, inclusive uma da Confederação. Mas a foto principal da primeira página, em vez de complementar visualmente o que eu escrevera, mostrava uma negra de bruços na rodovia, cercada de soldados com capacetes equipados com cassetetes, armas e máscaras contra gás. A foto tinha sido feita em 1965, no Domingo Sangrento, por um fotógrafo da Associated Press, e olhando para ela, ali em Atlanta, eu tentava entender por que essa antiga radiofoto tinha sido escolhida em detrimento de uma foto do casamento, feita por um membro do Times designado para me acompanhar em Selma. Por que não mostraram a cidade numa atitude não racista pela mudança? Por que continuar ilustrando a política da vitimização?

Uma semana depois, numa recepção na Biblioteca Pública de Nova York, encontrei um editor do Times que veio dizer que tinha gostado de minha matéria sobre os recém-casados de Selma.

“Mas por que vocês “não publicaram uma foto deles?”, perguntei.

“Ah, um dia eu lhe direi”, disse ele.

“Não”, insisti, “diga-me agora.”

“Bem”, disse ele, “é que Gerald Boyd fez um comentário negativo sobre elas na reunião de editores”.

“E quem é ele?”

“É o responsável pela editoria metropolitana”, respondeu ele, acrescentando que Boyd era um jovem executivo afro-americano em ascensão na redação do Times, e tinha sido sua falta de entusiasmo pelas fotos de casamento que fizera seus companheiros brancos concordarem com ele.

Eu não teria levado a questão mais longe se alguns anos depois não tivesse aceitado um convite para participar de um debate sobre a cobertura jornalística do Times, patrocinado pelo Centro de Comunicação de Manhattan. Estavam comigo no palco quatro outros membros do painel; a duas cadeiras de distância, do outro lado do moderador, sentava-se Gerald Boyd. Era um homem na casa dos quarenta, de fala macia e rosto redondo, uma calva incipiente, óculos de osso e um fino bigode. Usava um blazer azul, camisa branca e gravata escura com o nó bem apertado no pescoço. Foi notavelmente articulado em suas primeiras considerações, falando baixo e com firmeza, sem pressa. Quando a reunião chegava ao fim, antes de abrir a sessão de perguntas do auditório, o moderador convidou os participantes a formularem perguntas entre si; foi quando me dirigi a Gerald Boyd e perguntei: “o senhor é o homem que impediu que a foto de minha matéria sobre o casamento em Selma saísse na primeira página do Times?”.

Ele pareceu perplexo. Um murmúrio correu pelo auditório.

“Sou”, disse ele, afinal.

“Por quê?”, perguntei levantando a voz.

“Era desinteressante!”, disse ele.

“Desinteressante!”, exclamei.

“Mostrar um casal integrado na primeira página não era notícia”, explicou. “A foto não representava nada novo.”

“Em Selma?”, peguntei.

Gerald Boyd virou-se para o outro lado, e o moderador, possivelmente percebendo o mal-estar dele, mudou de assunto. Outros temas foram levantados e discutidos durante uma hora ou mais, e no fim do evento, depois de apertar a mão do moderador, Gerald Boyd encaminhou-se direto para a saída.

Fonte: Gay Talese, Vida de escritor. Páginas 272 a 275. Ed. Companhia das Letras (2009).


terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Fotogenia


sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

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Altos e baixos de uma nação

Sai no Brasil livro de James Agee e Walker Evans que retrata EUA nos anos 30, na Grande Depressão




SÉRGIO D'ÁVILA., DE WASHINGTON

Se "As Vinhas da Ira", de John Steinbeck, foi o romance que melhor captou o espírito do tempo da Grande Depressão norte-americana, "Elogiemos os Homens Ilustres", do escritor James Agee e do fotógrafo Walker Evans, tem esse mérito na não ficção.

Com duas diferenças que favorecem o segundo livro, que sai agora no Brasil: embora tenha sido lançado em 1941, dois anos depois de "Vinhas da Ira", foi feito três anos antes deste; e, diferentemente do livro de Steinbeck, que é um romance clássico, "Homens Ilustres" rompeu os limites da linguagem jornalística da época.

Foi um dos precursores do gênero chamado jornalismo literário. Um precursor esquisitão, que daria mais no gonzo Hunter Thompson, de "Medo e Delírio em Las Vegas", do que no arrumadinho Gay Talese, de "Aos Olhos da Multidão".

No verão de 1936, Agee recebeu uma pauta da revista "Fortune": passar oito semanas vivendo com três famílias de trabalhadores rurais das fazendas de algodão do sul do país e retratar suas condições de vida brutais e miseráveis. Levaria com ele o fotógrafo Evans, então na folha de pagamento de um dos programas federais do presidente F.D. Roosevelt.

Lançada em 1930 pelo fundador da "Time", a "Fortune" era uma revista mais interessante que a atual (a capa da edição mais recente é "As dez melhores ações para 2010"), com uma "esquizofrenia editorial, que deu vigor criativo e visão crítica" à publicação, como escreve Matinas Suzuki Jr. no posfácio da edição brasileira do livro.

Agee se envolve pessoalmente com os personagens que retrata e aparece ele próprio como personagem. Usa pseudônimos, interrompe a narrativa com listas, citações e poemas, reproduz palavras pelo som, pelo cheiro.

Veja como descreve a casa de uma das três famílias: "A casa fica só Em frente da casa: sua estrutura geral Em frente da casa: a fachada O cômodo sob a casa O corredor Estrutura dos quatro cômodos Odores Nudez e espaço" Nesse sentido, o texto do repórter de 27 anos é mais radical do que as imagens do então já consagrado fotógrafo de 33, cuja intenção era fazer retratos que o próprio Evans uma vez descreveu como "literários, impositivos, transcedentes" -esse trabalho pode ser visto em exposição atualmente em cartaz no Masp, em São Paulo. É difícil discordar de Evans.

Já o título do livro foi tirado de um verso do "Eclesiastes" da "Bíblia" apócrifa, conjunto de livros não aceitos por religiões como a judaica e a protestante, e não por seu homônimo do "Velho Testamento", como se pensa, aquele mais conhecido pelos versos "Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade" e "Nada há de novo debaixo do sol".

É o versículo 1 do capítulo 44, que diz: "Vamos agora louvar homens famosos, e nossos pais que nos geraram". Ironicamente, o "Eclesiastes" estabelecido teria mais a ver com o espírito do livro do que o apócrifo, já que faz o elogio do trabalho do homem justo.

Gerações de escritores, fotógrafos e leitores vieram e foram, mas a terra permaneceu igual. Talvez não exatamente o sul pobre do Alabama, tratado no livro, mas lugares como a Cordilheira dos Apalaches, em Estados dos EUA como a Virgínia Ocidental, em que 68 anos depois não é difícil encontrar trabalhadores nas condições retratadas por Agee e Evans.


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ELOGIEMOS OS HOMENS ILUSTRES
Autores: James Agee e Walker Evans
Lançamento: Companhia das Letras
Preço: R$ 62 (454 págs.)

Fonte: Folha de SP, do dia 17/12/2009.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009